O 11 de setembro e o domínio digital
É impossível entender o domínio americano sobre o digital sem ter em conta as consequências do 11 de setembro.
No rescaldo dos atentados terroristas, o imperativo moral levou a uma compreensível subserviência das autoridades europeias, que na prática estenderam o acesso do aparato de vigilância americano aos cidadãos europeus. Isso só mudou com Edward Snowden, Max Schrems e o escândalo Cambridge Analytica.
Claro que não foi a 11 de setembro de 2001 que começou a vigilância institucional da sociedade. Mas foi aí que ela se legitimou e se tornou uma ferramenta global, com uma consequência imprevista: o domínio do modelo americano sobre os negócios digitais.
O 11 de setembro ocorreu num momento em que a interdependência da globalização se fazia sentir e o modelo comunicativo da internet já estava a criar impacto, pelo que as mudanças ocorridas sobre a vigilância e a privacidade ajudaram a que a mentalidade das empresas americanas se tornasse dominante. As mudanças começaram a sentir-se logo nos primeiros meses de 2002.
Os americanos aprofundaram a relação com as secretas nacionais através de vários esquemas de cooperação, exigiram acesso a dados privados de entidades europeias (como a Swift, que gere os dados de quase todas as transações financeiras globais) e usaram e abusaram dos metadados gerados pelas comunicações globais. Ao mesmo tempo, a administração americana fundiu o conceito de vigilância pública e privada, atuando em conjunto e sobre as grandes empresas americanas para extrair delas toda a informação possível. Quer Bush quer Obama usaram e abusaram do aparato securitário para conseguirem os seus intentos, incluindo ataques e perseguições a meios de comunicação social e jornalistas.
Só após as revelações de Edward Snowden é que ficou claro para os europeus a extensão da rendição europeia aos interesses americanos – e quanto é que os direitos dos cidadãos europeus sofreram com isso. Felizmente, nessa altura já o Tratado de Lisboa tinha dado ao Parlamento Europeu poderes na área da justiça e dos assuntos internos. Pode parecer estranho que nem as revelações de que os americanos tinham efetuado escutas ilegais a líderes como Angela Merkel tenham provocado mudanças – mas a verdade é que as revelações de Snowden também mostraram que países como a Inglaterra tinham espiado o secretário-geral das Nações Unidas.
As práticas de abuso eram generalizadas e, na sua maioria, desconhecidas de público e legisladores, o que só mudou com Snowden – e isso ajuda a explicar que anda hoje nenhum país europeu tenha coragem para oferecer asilo ao denunciante, retirando-o do seu exílio forçado na Rússia. Foi preciso o caso Schrems para que a União exercesse alguma proteção sobre os dados dos seus cidadãos. Mas as tremendas implicações comerciais já se faziam sentir há anos.
O acordo Safe Harbour tinha efetivamente garantido às empresas americanas uma capacidade superior para definir os padrões de comportamento no mundo digital, e terá sído o maior entrave ao surgimento de empresas digitais relevantes no contexto europeu. Até no mundo académico se sentiu o impacto: a quantidade (e qualidade) dos dados à disposição dos investigadores americanos é incomparavelmente maior e livre de barreiras, o que lhes permite produzir mais investigação de forma mais rápida – o que conduziu e conduz a mais patentes e mais poder económico inovador do lado americano.
Os europeus demoraram a acordar de um sonho de cooperação que rapidamente se tornou numa ferramenta efetiva de supremacia económica. Na nascente economia digital, o exercício de poder dos gigantes norte-americanos ocorreu sem controlo na Europa – o que conduziu à aquisição de mais de 800 empresas potencialmente concorrentes do seu modelo de negócio e ao esmagamento de outras tantas através de abuso de posição dominante. É à luz disto que é preciso entender os atos de independência jurídica e comercial que são o RGPD, a diretiva de direitos de autor, o Digital Markets Act e o Digital Services Act – mas também a dezena de multas e processos que tem sido colocada por Margrethe Vestager aos gigantes tecnológicos europeus.
Os dados gerados no digital tornaram-se um ato político. E a soberania dos mesmos é não só um exercício de soberania, mas uma demonstração de poder e protecionismo económico. O 11 de setembro moldou os primeiros vinte anos do debate, mas não fechou a discussão sobre um dos problemas dominantes deste século.
Ler mais: O livro Of Privacy and Power é da autoria de dois cientistas políticos e relata detalhadamente este tema. A obra foi publicada em 2019 e não lida ainda com as consequências da decisão Schrems II nem com o DSA/DMA; mas faz um excelente alerta para as mudanças que se seguiram e é, por isso, importante.
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