A estupidez útil das demissões morais

Um país maduro não governa à força de comoções ou mais ou menos lágrimas. Governa com instituições fortes, regras claras e responsabilidade de resultados.

A morte de uma grávida é uma tragédia humana. Mas transformar cada tragédia num ato político é um sinal de degeneração institucional. O país parece viver obcecado com a ideia de que cada falha individual exige um sacrifício simbólico no topo do Estado. A lógica é linear, portanto sedutora: se algo correu mal num hospital, o ministro deve cair. É o triunfo da moral emocional sobre a razão institucional — e, por isso mesmo, um dos sintomas mais perigosos do nosso tempo.

O problema é que esta lógica de demissão instantânea destrói a própria ideia de responsabilidade política. Num regime democrático, a responsabilidade não é uma questão de culpa individual, mas de accountability sistémica: o governante responde pelas políticas, pelos incentivos, pela organização do sistema, não por cada erro humano cometido sob a sua tutela. A confusão entre responsabilidade e culpa é típica de sociedades politicamente imaturas, incapazes de distinguir o erro estrutural da falha contingente. Quando se exige a demissão de uma ministra da Saúde porque morreu uma grávida, o país não está a reforçar a exigência de resultados — está apenas a punir o azar.

Essa tendência tem raízes profundas na nossa cultura política. Portugal ainda vive sob o peso de uma moral católica da expiação, em que a purificação pública do pecado substitui a resolução racional do problema. O governante demite-se não para corrigir falhas, mas para aliviar a consciência coletiva. É o que Max Weber designaria por uma ética da convicção, e não da responsabilidade: o gesto vale mais que o resultado. O problema é que a política moderna, sobretudo em setores críticos como a saúde, não se faz de símbolos, mas de gestão racional de meios escassos — de eficiência, continuidade e planeamento. Ao transformar cada caso dramático num espetáculo mediático, o país está a alimentar uma perigosa espiral populista de indignação. Esta lógica aproxima-se do que Gustave Le Bon descreveu nas suas teorias sobre a psicologia das multidões: quando a emoção coletiva domina, o raciocínio desaparece. A política passa a reagir ao impulso, não à análise. Um ministro que sabe que pode ser derrubado por um acontecimento aleatório governa com medo — e quem governa com medo não reforma, apenas sobrevive.

Assim, num Estado moderno, as políticas públicas devem ser avaliadas por indicadores de desempenho, não por tragédias isoladas. O que importa é reduzir a mortalidade evitável, melhorar tempos de espera, racionalizar a despesa. Nenhum destes objetivos se atinge à força de demissões simbólicas. Cada vez que se troca um ministro para apaziguar a opinião pública, o sistema ganha uma desculpa para não mudar. É a versão institucional do mecanismo de dissonância cognitiva: como já punimos alguém, sentimos que o problema foi resolvido, e podemos voltar à rotina.

Há ainda uma dimensão económica nesta irracionalidade. A instabilidade política tem um custo elevado: cada demissão significa paralisia administrativa, perda de continuidade e desperdício de recursos. A saúde é um setor de longa maturação orçamental, onde as decisões tomadas hoje só produzem efeitos daqui a anos. Um sistema que muda de liderança por impulso mediático perde capacidade de planeamento, gera ineficiências dinâmicas e reduz o capital humano institucional acumulado. O custo é invisível, mas real — e pago por todos.

O problema do Serviço Nacional de Saúde não é a falta de ministros ou bons ministros, é a ausência de governação baseada em incentivos. Falta autonomia de gestão, faltam mecanismos de accountability horizontal, falta cultura de mérito. A troca de titulares apenas mascara a ausência de reformas estruturais. O verdadeiro desafio é introduzir uma lógica de economia política da eficiência, onde resultados e qualidade prevaleçam sobre o clientelismo e a inércia. Mas isso exige estabilidade e coragem — duas virtudes incompatíveis com a histeria mediática que domina o debate público.

Por trás deste fenómeno está também uma mutação cultural: a substituição da racionalidade pública por uma economia da emoção. As redes sociais transformaram cada tragédia em espetáculo, cada falha em trending topic, e cada demissão em entretenimento moral. A política, por sua vez, ajusta-se: deixa de ser um espaço de deliberação racional e passa a ser um mercado de afetos instantâneos. O resultado é um ciclo vicioso de recompensas políticas de curto prazo, onde o líder é valorizado não por resolver problemas, mas por reagir com rapidez simbólica.

É aqui que entra a dimensão filosófica da questão. A democracia só sobrevive se for capaz de temperar a paixão com razão — o que Platão chamava de governo da parte racional da alma sobre a irascível. Quando a política cede à emoção, entra em entropia democrática. O pedido de demissão de uma ministra por uma morte trágica é apenas a manifestação moderna desse desequilíbrio entre o logos e o pathos: uma sociedade que reage antes de pensar, que prefere culpados a soluções.

Há quem argumente que a demissão é “um gesto de ética”, uma forma de mostrar respeito pela vítima. Mas confundir empatia com governação é um erro perigoso. O verdadeiro respeito por quem morreu está em corrigir o sistema que falhou — não em oferecer uma cabeça simbólica ao altar da opinião pública. A ética política moderna, como lembrava Weber, exige responsabilidade pelos efeitos das ações, não apenas pela pureza das intenções. Exigir a queda de uma ministra por uma tragédia individual é, portanto, um ato de estupidez útil: útil para a catarse coletiva, útil para o populismo moral, útil para o ridículo jornalismo de indignação. Mas profundamente estúpida do ponto de vista institucional e racional. Porque o efeito líquido é sempre o mesmo: governos paralisados, políticas adiadas e um sistema de saúde cada vez mais incapaz de aprender com os erros.

Em resumo, um país maduro não governa à força de comoções ou mais ou menos lágrimas. Governa com instituições fortes, regras claras e responsabilidade de resultados. Até lá, continuaremos presos nesta liturgia irracional: uma tragédia, uma indignação, uma (tentativa de) demissão — e depois, silêncio. Enquanto isso, o SNS continuará a degradar-se, não por falta de ética, mas por excesso de moralismo. E talvez um dia compreendamos que a política não é um confessionário. É uma forma racional de organizar a vida coletiva — e quem a reduz a espetáculo moral perde, ao mesmo tempo, a razão e o futuro.

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