A geringonça faz mal à Saúde?
O orçamento da Saúde aumentou para 10,3 mil milhões, mas há hospitais que fecham salas de parto, outros falam em catástrofe e noutros há crianças a fazer quimio nos corredores. Chamem o Paulo Macedo.
O que se passa na Saúde? Nas últimas semanas/meses, têm-se multiplicado notícias e relatos preocupantes sobre o setor em Portugal. Basta folhear os jornais:
- A maternidade Alfredo da Costa encerrou três salas de parto aparentemente por falta de profissionais disponíveis;
- No hospital de São José, os chefes de equipa de medicina interna e cirurgia apresentaram a demissão por considerarem que as condições da urgência não têm níveis de segurança aceitáveis e falam na necessidade de “um plano de catástrofe”;
- No São João, as crianças fazem quimioterapia em corredores e os pais falam da falta de condições num hospital onde a ala pediátrica funciona há dez anos em contentores;
- No Santa Maria, o Tribunal de Contas vem dizer que se anda a desbaratar dinheiro público para se fazer menos e pior do que no São João, no Porto.
Numa altura em que a Nova Lei de Bases da Saúde foi atirada para as calendas gregas e a Estrutura de Missão para a Sustentabilidade do Programa Orçamental da Saúde não dá sinais de vida, convém perceber o que se passa nos hospitais portugueses. Nem é preciso um estetoscópio para perceber que a Saúde não respira saúde. Basta ler as notícias.
Um problema de financiamento
Numa sociedade com uma curva demográfica descendente e inclinada, é normal que o Orçamento com a saúde seja cada vez maior. Há 20 anos, o Estado gastava 4,1% do PIB na Saúde, até atingir um pico de 6,2% em 2012. Com a crise e com a troika, essa percentagem caiu para 5% em 2013 e manteve-se praticamente inalterada. Para este ano, o Governo aumentou em 360 milhões o Orçamento para a Saúde, para um total de 10,289 mil milhões de euros.
Despesa do Estado com a Saúde (em % do PIB)
Na Saúde, o dinheiro nunca é suficiente, mas como vivemos numa sociedade onde os recursos são limitados é preciso fazer opções e gerir expectativas.
Um problema de expectativas
Em abril, num diagnóstico realista sobre o setor, Marcelo Rebelo de Sousa alertava para “o gap crescente entre aquilo que os sistemas podem proporcionar e aquilo que as sociedades deles esperam”. Para o Presidente da República, “no domínio da saúde, o drama é este: Tudo aquilo que se atinja passa nesse minuto a ser óbvio e banal. O galope das exigências é imparável”.
Além dessa expectativa, legítima, existe uma outra que vem adensar o problema. António Costa e a sua geringonça “venderam” a tese da “viragem da página da austeridade” e do “fim da austeridade” e é com incredulidade que as pessoas olham para os hospitais e tentam perceber como é possível que agora os problemas na Saúde pareçam ser maiores do que eram no tempo da troika.
No tempo troika, a Saúde estava melhor?
Apesar dos cortes, na altura do resgate financeiro, o ministro da Saúde, Paulo Macedo, manteve sempre um nível de popularidade razoável para as circunstâncias e, apesar do caos nas urgências provocado a certa altura pelo surto de gripe, nunca ficámos com a sensação de uma degradação acentuada na qualidade dos serviços e do SNS.
Nessa altura, além de um ministro da Saúde competente (que a geringonça foi, e bem, resgatar para a Caixa), o setor da Saúde beneficiou igualmente de dois fatores determinantes: uma mega transferência do fundo de pensões da banca para ‘zerar’ a dívida dos hospitais aos fornecedores e ainda o aumento do horário de trabalho na Função Pública das 35 para as 40 horas. O aumento de 12,5% no horário, sobretudo em setores como a saúde, implicou uma injeção brutal de horas de trabalho no sistema, o que ajudou a reduzir drasticamente a fatura das horas extra e a disfarçar os cortes da troika e do Governo de Passos Coelho.
35 horas, o maior erro de gestão de Costa
Com a chegada da geringonça, deu-se dois passos atrás na Saúde. Por um lado, a dívida em atraso dos hospitais aos fornecedores voltou a aumentar (mil milhões de euros só às farmacêuticas), o que já obrigou Adalberto Fernandes a ter de injetar mais 500 milhões de emergência no sistema. Além disso, num erro grosseiro de gestão, a geringonça reverteu as 40 horas na Função Pública, uma medida populista e para a qual o Estado não tinha dinheiro.
Joaquim Sarmento explicava esta semana no ECO que o aumento da despesa da geringonça na Saúde serviu basicamente para compensar o efeito do aumento de preços, a reversão dos cortes salariais decididos por José Sócrates em 2010 e, ainda, para tapar o “buraco” provocado nas escalas dos hospitais com a passagem às 35 horas.
Um problema de eficiência e incompetência
Mas deitar dinheiro para cima dos problemas é apenas um placebo para disfarçar patologias bastante mais graves no sistema. Ainda todos se lembram como começou a ladainha do “Somos todos Centeno” ou “Somos todos Adalberto”. O ministro das Finanças foi ao Parlamento passar um atestado de incompetência ao seu colega da Saúde ao dizer que “os recursos que estão a ser dedicados ao SNS são muito superiores aos que eram em 2015 e pode seguramente haver má gestão. Haverá e temos de olhar para ela”.
O Governo não olhou para ela, mas o Tribunal de Contas (TC) olhou. Numa auditoria a comparar o Centro Hospitalar de Lisboa Norte (Santa Maria + Pulido Valente) com o Centro Hospitalar de São João, o TC chega à conclusão que, por causa de modelos de organização pouco eficientes, os dois hospitais de Lisboa andam literalmente a desbaratar dinheiros públicos.
O São João faz mais, melhor e com menos dinheiro e, na auditoria comparada, o TC escreve que “se o centro hospitalar Lisboa Norte alcançasse custos por doente padrão iguais aos do centro hospitalar de São João teria obtido [no triénio 2014 a 2016] uma poupança 211 milhões de euros”. Valores que são “suficientes para o Estado financiar, aos preços atualmente praticados, a realização três milhões de consultas externas ou o tratamento de 30 mil utentes com hepatite C”, ilustram os juízes.
E porque andam o Santa Maria e o Pulido Valente a desbaratar dinheiro público e a gastar, em média, mais 26% a tratar cada doente? A principal razão apontada pelo TC é o modelo de organização: enquanto o São João tem um modelo assente em estruturas intermédias de gestão, que permite uma gestão mais descentralizada, participada, responsabilizada e com uma boa comunicação entre o staff clínico e os gestores, o Santa Maria e o Pulido Valente mantêm a estrutura tradicional dos departamentos/serviços e com um número de chefes (228 funcionários com funções de direção) bastante maior (44%) do que o do São João (158).
O TC, sobre o São João, elogia ainda uma ferramenta Business Intelligence, desenvolvida em parceria com uma startup local, e que permite a agregação da informação produzida pelas dezenas de sistemas informáticos. O investimento nesta plataforma permitiu o acesso de forma imediata e simples a uma variedade de indicadores — produção, económico-financeiros e de recursos — possibilitando à gestão obter uma visão geral integrada, uniforme e quase em tempo real de toda a estrutura.
Resumindo, a Saúde tem um problema de financiamento, um problema de expectativas, um problema de gestão e um problema de eficiência. Uns resolvem-se com dinheiro, mas para outros bastam organização e competência. Chamem o Paulo Macedo.
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