Agenda Anticorrupção: os dogmas do relatório técnico
Ousamos até sugerir que o assistente, enquanto lesado civil, até dispõe de mais meios de reação ao arquivamento do que o número de meios que o arguido dispõe para reagir à acusação.
Terminou, no passado dia 12 de agosto, o prazo de consulta pública sobre o relatório técnico que esteve na base da aprovação da designada Agenda Anticorrupção. Tratou-se de uma iniciativa digna de ser enaltecida já que permitiu aos cidadãos, em geral, e aos profissionais do foro, em particular, tomar posição sobre as medidas apresentadas. Vários foram os agentes da sociedade civil que tomaram posição sobre o tema. A equipa de Penal, Contraordenacional e Compliance da MFA Legal foi um dos agentes que apresentou o seu contributo.
Este último é público (e pode ser consultado) e o espaço que aqui nos é reservado não se compadece com a sua explicitação. Há, contudo, um aspeto que se impõe realçar: a existência de determinadas asserções, não comprovadas e até contraditórias com a praxis do foro, de que o relatório técnico parte e que podem distorcer o resultado das preconizadas alterações.
Tomemos, aqui, apenas um exemplo: o propósito constante do ponto “12.2. Reequacionar a fase processual da instrução”. Nesse particular, é afirmado no relatório que “há o risco de que, na prática, para a «descoberta da verdade», vários dos procedimentos realizados no âmbito da instrução acabem por se aproximar do que se verifica no julgamento, bem como na fase anterior do inquérito”. Mas a verdade é que não existem quaisquer dados que suportem este suposto “risco”. Aliás, a nossa experiência de dezenas de anos de prática forense, é marcadamente oposta, isto é: todas as limitações à produção de prova no âmbito da instrução são, de facto e por regra, reiteradamente exercidas pelos juízes de instrução.
Por outro lado, a partir de ideias artificialmente suportadas em premissas que se autoanulam (dizendo, primeiro, que o assistente só dispõe de um meio de reação ao arquivamento, quando, logo após, reconhece que o mesmo dispõe de, pelo menos, dois), o relatório técnico considera que “[i]mporta refletir sobre o âmbito da instrução também desta perspetiva, eventualmente dando-lhe uma diferente conformação consoante seja requerida pelo assistente ou pelo arguido”. Ora, não só não existe qualquer superioridade dos mecanismos de reação ao dispor do arguido (para reagir à acusação) em relação àqueles que existem ao dispor do assistente (para reagir ao arquivamento), como também, de idêntico ponto de vista legal, já existe uma diferente conformação da instrução consoante seja requerida pelo assistente ou pelo arguido.
Na verdade, seguindo o mesmo critério quantitativo do relatório técnico, ousamos até sugerir que o assistente, enquanto lesado civil, até dispõe de mais meios de reação ao arquivamento do que o número de meios que o arguido dispõe para reagir à acusação. Além de (i) poder requerer a intervenção do imediato superior hierárquico do autor do arquivamento e de (ii) poder requerer a abertura da fase de instrução, poderá, igualmente, continuar a (iii) demandar civilmente o arguido, deduzindo pedido de indemnização civil separado, na jurisdição civil.
Foi também por o relatório técnico, a partir de premissas e dogmas errados, trilhar um caminho de mudança que pode culminar na compressão de direitos fundamentais que considerámos não poder ignorar o convite de intervenção e participação cívica que foi genericamente endereçado, sendo o nosso trabalhado o produto do cumprimento de um dever de cidadania. Este é um dos vários exemplos que procurámos sinalizar, ao lado de múltiplas propostas de melhoria da lei.
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