Amigos não deixam amigos usar o PIB para falar da Irlanda
O PIB é uma medida imperfeita para descrever a atividade económica e o bem-estar económico das pessoas. Na maior parte dos casos, é o ponto de partida para uma discussão sobre o que está a acontecer.
Um exercício que costumo fazer nas aulas é pedir aos alunos para fazerem uns gráficos usando dados macroeconómicos e escreverem um título relevante que chame a atenção do leitor. Um pouco ao estilo do que se faz na The Economist e, suponho, nos gabinetes de marketing e comunicação política.
Num dos exemplos de que me recordo, os alunos estavam a fazer um gráfico para o crescimento homólogo do Produto Interno Bruto Real da Irlanda (PIB real ou em volume). O gráfico tinha um aspecto estranho, com dois picos seguidos, mais ou menos assim, ^-^, e com números muito implausíveis, com um crescimento do PIB na ordem dos 20% num ano. Primeiro, os alunos pensavam que havia um erro, mas confirmámos que os dados estavam corretos. O título que escolheram foi óptimo: The Green Knight Rises.
Este gráfico serviu de base para uma discussão sobre o que o PIB mede (e o que não mede), mostrando como, para alguns países, esta estatística pode ser bastante distorcida.
Existem vários problemas bem conhecidos com o PIB. Primeiro, não reflete o ambiente e não diz nada sobre a desigualdade no rendimento. É uma medida retrospectiva, e que depende de preços de mercado que, por vezes, são inexistentes ou não representam o verdadeiro valor económico.
Outra limitação é que o PIB não mede o consumo direto. Um aspecto particularmente relevante nesta discussão é a influência das empresas multinacionais. Ao escolherem em que país registam a sua produção (normalmente em países com impostos baixos), estas empresas podem criar discrepâncias entre a atividade económica medida pelo PIB e a atividade económica real, levando a flutuações e revisões significativas nos números do PIB. Foi precisamente o que aconteceu em 2015.
O caso da Irlanda é tão famoso que até o governo irlandês pede para não se interpretar a atividade económica com base no PIB. Preferem usar uma medida chamada “Procura Doméstica Modificada” (MDD), que reflete melhor a atividade económica doméstica na Irlanda. Outra alternativa considerada é o rendimento nacional bruto (GNI). Estas medidas não são diretamente afetadas pelas multinacionais que, apesar de tudo, geram algum emprego e alguma procura local, e por isso têm um efeito indireto.
Apesar dos defeitos, para a maior parte dos países, o PIB ainda é a melhor estatística que temos para medir a atividade económica. Esta semana foram publicadas as primeiras estimativas do PIB para o último trimestre de 2023 nos países da União Europeia. Portugal registou o maior crescimento do PIB real nos países para os quais temos estimativa em relação ao último trimestre de 2022: 2,2%. É um número positivo, maior do que o esperado. No lado oposto, o PIB da Irlanda contraiu-se 4,8%, quase quatro vezes pior que o segundo pior registo, da Áustria, uma redução de 1,3%.
O Green Knight está a afundar-se? Ainda não. Além das limitações do PIB para medir a atividade económica no caso da Irlanda, não se podem tirar conclusões fortes baseadas em uma ou duas observações isoladas. Claro que a Irlanda tem desafios económicos importantes.
A implementação do imposto mínimo global de 15% reduzirá um pouco a vantagem da Irlanda como destino de investimento estrangeiro e terá efeitos na atividade económica. Tem também uma elevada desigualdade no rendimento antes de impostos e subsídios (terceiro país mais desigual da OCDE em 2018), ainda que compensada por um sistema de redistribuição forte que reduz esta desigualdade (meio da tabela da OCDE depois de redistribuição).
Igualmente, nem tudo está bem em Portugal, apesar dos números do último trimestre. O PIB é uma medida imperfeita para descrever a atividade económica e o bem-estar económico das pessoas. Na maior parte dos casos, é apenas o ponto de partida para uma discussão sobre aquilo que realmente está a acontecer.
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