As vacinas e a negociação com os Estados
A relação entre os Estados e as empresas farmacêuticas terá de assentar na cooperação e na parceria. Não é, portanto, momento para rupturas nem para posições de força.
A negociação entre as empresas privadas e os Estados dos contratos de fornecimento das vacinas COVID-19 é um assunto delicado. Tratando-se de um assunto que envolve simultaneamente o direito à vida e os interesses comerciais, seria de esperar que a negociação fosse realizada com bom senso, num quadro de boa-fé e de transparência. Infelizmente, há sinais de que isso não está a acontecer. Um exemplo está no relato do “The Bureau of Investigative Journalism” sobre as negociações entre um dos produtores de vacinas e dois dos maiores países da América Latina – a Argentina e o Brasil. Outro exemplo está nas contrapartidas oferecidas por Israel, designadamente o acesso a dados em troca de vacinas, àquele mesmo produtor. E um terceiro exemplo está na polémica negociação entre a Comissão Europeia e um outro produtor, que atrasou a vacinação europeia. O que fazer para evitar estas situações?
O desenvolvimento das vacinas num curtíssimo espaço de tempo foi um feito extraordinário da ciência. De um prazo médio de desenvolvimento que tradicionalmente ronda os oito anos, encurtou-se o prazo para menos de um ano. É certo que a tecnologia que suporta algumas destas vacinas já estava em estudo há algum tempo, e que as vacinas foram inicialmente autorizadas sob procedimentos de emergência, mas o sucesso da indústria farmacêutica é indiscutível. A ciência e a colaboração internacional em prol do desenvolvimento das vacinas não falharam, ao contrário dos políticos locais. Como é então possível que o capital de simpatia que o sector granjeou nos últimos meses esteja agora a ser desbaratado? A resposta é simples: porque há geografias que, objectivamente, não estão a receber as vacinas que lhes foram prometidas. O caso da Europa e dos países em desenvolvimento são os mais evidentes.
A falta de fornecimento de vacinas está a levar cada vez mais países a solicitarem o levantamento dos direitos de propriedade intelectuais detidos pelas farmacêuticas e sobre os quais assentam a produção das vacinas. De resto, já desde o início da pandemia que se ouvem vozes nesse sentido.
Em Maio de 2020, poucos meses depois de declarada a pandemia, vários países em desenvolvimento juntaram-se e sob o patrocínio da Organização Mundial da Saúde foi criada uma iniciativa chamada C-TAP (Covid 19 Technology Access Pool). Entretanto, em face das polémicas geradas em torno dos contratos de fornecimento, a ideia de levantar os direitos de propriedade ganhou novos apoios e na próxima semana terá lugar uma reunião de outra organização internacional, desta feita a Organização Mundial do Comércio, onde a questão também será debatida. A pressão aumenta a cada dia que passa.
Mas devem esses direitos de propriedade intelectual ser levantados? A minha resposta é negativa – não, não devem ser levantados. Os direitos de propriedade são fundamentais ao investimento na indústria farmacêutica, na qual o desenvolvimento de novos produtos demora tempo e é tipicamente muito incerto. Trata-se de uma indústria que, incluindo apenas os países da OCDE, investe mais de 150 mil milhões de dólares por ano, entre recursos privados e públicos, e que em alguns países chega ao ponto de dedicar mais de 30% do valor acrescentado bruto anual ao financiamento de nova investigação e desenvolvimento. Isto dito, há melhorias que podem ser introduzidas ao processo de patenteamento. Uma dessas melhorias passa por reduzir o período de protecção da propriedade intelectual, em face da própria redução do tempo de chegada ao mercado.
O problema que hoje se sente ao nível do fornecimento das vacinas decorre essencialmente de limitações de produção. O que se pede à indústria farmacêutica – um desafio que a indústria aceitou, é sempre bom recordar – é próximo do hercúleo. Estamos a falar de uma indústria que teria uma capacidade de produção de cinco mil milhões de vacinas antes da pandemia e à qual se pede agora que duplique ou triplique a capacidade de produção no espaço de poucos meses. O estrangulamento não se limita à capacidade endógena dos produtores. Aplica-se também aos fornecedores das empresas farmacêuticas, cujas próprias limitações também estão a emperrar a cadeia de produção. O problema curiosamente não está na distribuição, que até há pouco era apontado (até ver erradamente) como o elo mais fraco na cadeia.
O mercado das vacinas é competitivo. Neste momento, estão globalmente a ser testadas 75 vacinas em ensaios clínicos com humanos e 78 pré-ensaios em animais. Espera-se, portanto, que muitas mais vacinas venham a ser autorizadas, para além daquelas que já foram autorizadas. Além disso, estão também a ser concretizados vários acordos de licenciamento entre produtores originais das vacinas e produtores terceiros que, a breve trecho, permitirão aumentar significativamente a capacidade de fornecimento. O licenciamento permitirá assim a partilha de conhecimento e a transferência de tecnologia, em segurança e sem expropriação dos direitos de propriedade intelectual. Entre os acordos já estabelecidos encontra-se, por exemplo, a comercialização das vacinas ao preço de custo em benefício dos países menos desenvolvidos.
A relação entre os Estados e as empresas farmacêuticas terá de assentar na cooperação e na parceria. Não obstante o sucesso do desenvolvimento das vacinas, há sinais de que as novas variantes poderão ser mais resistentes e a certeza de que a vacinação vai prolongar-se durante muito tempo. Não é, portanto, momento para rupturas nem para posições de força. De resto, não é claro qual dos dois lados tem mais força. Os Estados têm certamente o poder da coerção. Mas as empresas têm a cadeia de produção e os incentivos competitivos do seu lado. Nestas circunstâncias, a cooperação é preferível à não-cooperação. Ou, se preferirmos a linguagem da economia institucionalista, nenhuma das partes está em condições de impor à outra uma ameaça credível (“credible threats”). Resta, pois, a opção de enveredar pelos compromissos credíveis (“credible commitments”). Todos têm um capital de confiança e simpatia a preservar.
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