Boris no Parlamento
A Europa aguarda notícias de Londres. O primeiro-ministro poderá deixar de mentir para começar a inventar a verdade.
O Brexit de Boris colapsou em pleno Parlamento. O agente louro do Brexit entra na Câmara como um marajá no alto de um elefante ou como um sheik confortável no cume de um camelo. Na primeira investida constitucional do Parlamento, Boris está em plena selva partidária, entre um lugar vazio e coisa nenhuma no desconcerto de um deserto político. O pensamento mágico dissipou-se de forma mais rápida do que a quimera de uma lâmpada espalhando os fumos sem libertar o Génio. O Brexit de Boris é uma bicicleta acorrentada a um poste e à qual roubaram as duas rodas. É a imagem acabada do fracasso.
A “ambiguidade construtiva” era afinal uma forma expedita de apresentar a improvisação, o cinismo, o calculismo, como se fossem uma estratégia de acção política de superior sofisticação. Mas não. A estratégia seria apenas a de deixar o tempo correr sem nada fazer, fazendo parecer que muito estaria a ser feito. Com a solução legal por defeito a estabelecer uma saída automática da Europa a 31 de Outubro, entre muitos anúncios internos e muita agitação com planos para um “Novo Reino Unido Global”, a ideia política resumia-se em recolher ao abrigo, deixar passar a tempestade política do Brexit e emergir do outro lado em forma de herói. A estratégia política falhou em toda a linha e Boris não se atirou ao Thames.
O erro político central está na suspensão do Parlamento. A rápida resposta constitucional da Câmara trouxe à superfície o pior do primeiro-ministro. Depois de ter perdido o controlo da agenda do Parlamento, depois de ter perdido a possibilidade de um Brexit sem acordo, depois de ter perdido a votação para a convocação de Eleições Gerais, Boris está isolado entre a fuga para a frente e a fantasia do milagre inglês. De caminho, ameaça e expulsa deputados conservadores que votaram contra o Governo, entre os quais o próprio neto de Churchill.
Para quem sonha ser Churchill este é o maior delito contra a memória do Grande Homem. Boris não percebe que os defeitos pessoais de Churchill foram a origem das virtudes políticas de Churchill. Em fulminante contraste, os defeitos pessoais de Boris são a origem dos defeitos políticos de Boris. Um detalhe que faz a diferença entre a referência histórica e a breve incidência do acaso.
Sem acordo com a Europa, Boris está obrigado a pedir um novo adiamento para o Brexit, agora até 31 de Janeiro de 2020. O primeiro-ministro recusa-se a solicitar novo adiamento, recusa a demissão e aposta em Eleições Gerais. O líder Labour Jeremy Corbyn, que no último ano exigiu por 50 vezes a realização de Eleições Gerais, 16 das quais em pleno Parlamento, recusa a proposta de Eleições Gerais em meados de Outubro. É a incoerência, o cinismo, o calculismo, a cobardia política no impasse inultrapassável do Brexit.
O Governo equacionou até a possibilidade de apresentar uma Moção de Não-Confiança, declarando politicamente a não confiança do Governo no próprio Governo. Acrescente-se que o Governo só poderia ganhar a votação se a Oposição votasse ao lado do Executivo, uma vez que ao Governo resta apenas uma minoria parlamentar operacional. Absolutamente surreal.
Quando o primeiro-ministro se viu obrigado a agir politicamente no Parlamento, todos os seus movimentos revelaram uma estratégia pouco consentânea com o precedente e a prática conservadora. A lógica política implementada tocou uma estratégia de subversão revolucionária com um toque de inspiração com origem em Trotsky. Assumir o monopólio de uma vanguarda política, considerar as opiniões políticas não coincidentes com a do Governo como “deslealdade” e “traição”, recorrer à prática da chantagem e da ameaça políticas, expurgar o Partido de todos os elementos “rebeldes” – Boris o rebelde a eliminar todos os rebeldes.
Em nome do Brexit, o primeiro-ministro parece pretender transformar a latitude política e histórica do Partido Conservador na versão estreita de um Partido Nacionalista. Um expediente revolucionário de curto prazo que poderá pôr em causa a identidade e a coesão dos Conservadores no longo prazo.
No entanto, perante a incerteza, perante o impasse, perante o irresolúvel e irredutível Brexit, as instituições do Reino Unido apresentam uma resiliência e um elenco de recursos admirável. A maior e mais extraordinária revelação continua a ser a natureza conservadora e constitutiva das práticas políticas estabelecidas. Sublinhe-se que a “Constituição Política” não escrita do Reino Unido incorpora um património de regras, práticas e precedentes, que um Governo dito Conservador desrespeita a cada momento da sua acção política. No entanto, a lógica do consenso, o respeito pelo precedente, o módico do equilíbrio, o desígnio do controlo efectivo da mudança, permite que a Oposição não Conservadora corrija os delírios menos constitucionais de um Governo dito Conservador. Sublinhe-se que todos estes arranjos políticos são frágeis e podem entrar em colapso a qualquer momento.
A Europa aguarda notícias de Londres. O primeiro-ministro poderá deixar de mentir para começar a inventar a verdade. Entretanto, no caos de Downing Street, o gato Larry e o cão Dylan governam as terras de Sua Majestade com a certeza vitoriana de que este ainda não é o fim dos tempos.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico
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