Coronavírus – caso de força maior?

A crise do coronavírus tem começado a pôr em causa a estabilidade e o cumprimento dos contratos, verdadeira base da atividade económica.

A crise do coronavírus, com o surgimento do novo Covid-19 e os efeitos das medidas de quarentena aplicadas pelos Estados mais (ou menos) afetados, tem começado a pôr em causa a estabilidade e o cumprimento dos contratos, verdadeira base da atividade económica.

É o que sucede com as empresas que mantêm relações comerciais com empresas chinesas, nomeadamente, empresas portuguesas que transformam e vendem bens provenientes do mercado chinês, as quais poderão assistir a perturbações na sua cadeia de fornecimento. É o que também já sucede, na Europa, fora de qualquer relação com o mercado chinês: na nossa vizinha Espanha, os jornais noticiam que o inesperado cancelamento do Mobile World Congress (MWC), em Barcelona, justificado com base em “razões de força maior” (a crise do coronavírus), criou litígios entre a entidade organizadora e os respetivos clientes, fornecedores e seguradoras.

De facto, a crise do coronavírus põe uma série de questões jurídicas, nomeadamente, no domínio do direito do trabalho (por exemplo, pode uma entidade patronal enviar um trabalhador para uma zona severamente afetada pelo vírus?), do mercado de capitais (por exemplo, deve uma empresa cotada divulgar publicamente as previsões de afetação da sua atividade, por este fenómeno?), dos seguros, e, sobretudo no domínio dos contratos, em que, inevitavelmente, se discutirá a questão, que intitula e motiva o presente texto: constitui a crise do coronavírus um caso de força maior? A parte que incumpre um contrato, por causa dessa crise, não fica obrigada a indemnizar a contraparte?

Estando em causa contratos internacionais, o primeiro aspeto a considerar é o da lei aplicável, sendo certo que as jurisdições anglo-saxónicas, europeias e chinesas admitem cláusulas contratuais de força maior ou preveem mesmo regras legais, com efeitos semelhantes.

Para as empresas portuguesas, que incumpram ou se confrontem com o incumprimento de contratos sujeitos à lei chinesa, é importante referir que o Supremo Tribunal da República Popular da China reconheceu que as perturbações no cumprimento de contratos provocadas pela crise da “Gripe das Aves”, em 2002/2003, constituíam casos de força maior, à luz do direito chinês, sendo previsível que esta jurisprudência se mantenha. Essas empresas podem pedir ao CCPIT (“China Council for the Promotion of International Trade”), a passagem de “certificados de força maior”, que poderão constituir um importante meio de prova, em Tribunal.

E se o contrato estiver sujeito à lei portuguesa?

Neste caso, há que verificar, antes de mais, se os contratos contêm uma cláusula de força maior, “Force Majeure” ou (na terminologia anglo-saxónica) “Acts of God”, em que as partes preveem a suspensão temporária ou até a extinção das suas obrigações, sem qualquer dever de indemnização, em face de acontecimentos inesperados e que fogem ao seu controlo, normalmente, previstos de forma exemplificativa, no próprio contrato, como catástrofes naturais, atentados terroristas, guerra, etc.

É importante notar, que o ónus de prova da existência de força maior cabe à parte que alega a crise do coronavírus, como motivo para não cumprir o contrato, a qual deve demonstrar que existe uma relação causal, entre aquele motivo de força maior e o não cumprimento. Note-se, ainda, que não basta alegar que o cumprimento se tornou mais difícil ou oneroso, sendo necessário demonstrar uma verdadeira impossibilidade de cumprir, por exemplo, porque não há outra forma de efetuar a prestação acordada. Será o caso de uma empresa portuguesa, que não consegue satisfazer as encomendas dos seus clientes, porque estas dependiam de mercadorias produzidas por empresas chinesas, que não as entregaram, a qual deve provar, que não tem outra forma de satisfazer essas encomendas.

Convém sublinhar, que as cláusulas de força maior quase sempre preveem obrigações, a cumprir em prazo curto, de comunicação ou informação à contraparte da ocorrência de um evento de força maior. E, normalmente, também preveem obrigações de mitigação de danos, a cargo da parte, cuja prestação não foi diretamente afetada pelo evento de força maior.

Caso o contrato não estipule qualquer cláusula de força maior, não será tão fácil proteger a parte que não efetuou a sua prestação, devido à crise do Coronavírus, mas não será impossível. De facto, o artigo 790º, nº 1, do nosso Código Civil prevê a denominada impossibilidade objetiva, justamente, para os casos em que a prestação se torna impossível, por facto não imputável ao devedor.

Nestes casos, a obrigação extingue-se, sem lugar a qualquer obrigação de indemnização, ou suspende-se, se a impossibilidade for temporária, sem obrigação de pagamento de juros moratórios. É importante notar, que o nosso Supremo Tribunal de Justiça é bastante exigente, ao verificar a ocorrência de um caso de impossibilidade objetiva, exigindo “uma barreira objetiva inultrapassável pelo devedor ou por qualquer pessoa que o possa substituir” ou uma “impossibilidade absoluta”, “cabal, no sentido de não ser realizável por ninguém”.

Em todo o caso, os empresários e gestores deverão adotar uma atitude pró-ativa, verificando junto dos seus advogados ou assessores jurídicos, o que devem e podem fazer. É que, nesta como noutras matérias, o direito e os tribunais protegem as partes diligentes, no cumprimento dos contratos, verdadeira base da atividade empresarial e económica.

*Alexandre Mota Pinto é sócio da Uría Menéndez – Proença de Carvalho.

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