De novo, o doping fiscal irlandês e a nossa boa consciência

  • António Pedro Braga
  • 17 Fevereiro 2021

Falar de fiscalidade comparada não é certamente como falar de ondas gravitacionais, mas, sinceramente também não é, com o devido respeito, como falar das últimas expulsões do Big Brother…

Nas últimas semanas, as páginas do “Público” têm sido o palco de uma controvérsia em que a jornalista Bárbara Reis e o liberal Carlos Guimarães Pinto têm esgrimido argumentos contra e a favor do modelo de tributação das empresas irlandês como paradigma possível para uma mudança profunda no nosso quadro fiscal empresarial. Ainda antes de dizer ao que venho, cumpre-me, desde logo, fazer uma declaração de interesses: politicamente, estarei mais próximo de Carlos Guimarães Pinto, pelo que a minha opinião não será impermeável a esta inclinação. No entanto, o que me move não é uma afirmação política, mas sim a reposição de alguma cientificidade e objetividade na análise de um tema fiscal, e, sobretudo, por dever de ofício, recordar que um juízo sobre fiscalidade comparada requer, hoje em dia, uma visão de conjunto que não se compadece com análises totalmente fragmentadas e com cherry-picking de dados a benefício da argumentação. Falar de fiscalidade comparada não é certamente como falar de ondas gravitacionais, mas, sinceramente também não é, com o devido respeito, como falar das últimas expulsões do Big Brother…

Ora, seja qualquer for o ângulo de análise, parece que a crua realidade dos números que verdadeiramente contam ultrapassa mesmo a impressão genérica que vamos tendo sobre o profundo fosso que nos separa da Irlanda, o qual, de resto, é extremamente redutor atribuir somente à política fiscal ou, singularmente, a qualquer outro factor. Por muito que queiramos, empatar com a Irlanda na taxa de desemprego ou marcar um golo no “Índice Global de Economia Verde” não nos vai guindar à Liga dos Países Campeões europeus, de que a Irlanda é membro permanente. Vejamos: o índice de Desenvolvimento Humano do PNUD da ONU de 2020, classifica a Irlanda em 2º lugar e Portugal em 38º. No mesmo índice em 2005, a Irlanda estava em 8º lugar e Portugal em 27º. Quanto ao PIB per capita em paridade do poder de compra, em 1995 a Irlanda ocupava o 12º lugar e Portugal o 16º, ao passo que em 2019 a Irlanda é o 2º e Portugal o 20º (Pordata). Se quisermos ir mais fundo (dados da OCDE), o rendimento disponível per capita da Irlanda (depois de impostos, portanto) era, em 2000, o 4º da UE ($22.208) e o de Portugal o 15º ($12.816), ao passo que em 2019 a Irlanda era o 3º da UE ($46.462) e Portugal o 18º ($23.894). Finalmente, em 2019 a Irlanda era o país europeu com maior percentagem de licenciados (47,3%, para 16,8% em 1995), ocupando Portugal o 22º (26,1% para 10,5% em 1995; dados Pordata). Lembramo-nos todos certamente que ambos os Países foram intervencionados pelo FMI na última grande crise financeira…

É então todo este percurso o corolário de uma falha moral, de uma espiral de degenerescência ética do povo ou dos Governos irlandeses, que os faz reincidir numa traição ao espírito de lealdade e solidariedade fiscal europeu? Como é que, mesmo no auge da crise financeira, os irlandeses não transigiram na defesa da sua taxa de IRC geral de 12,5%? Ora, o que a Irlanda fez não foi mais do que utilizar um instrumento de política económica e financeira para contrariar desvantagens naturais e evidentes de um pequeno país periférico, cuja economia é obrigatoriamente aberta ao exterior (se quer pertencer à UE). Algures na década de 90, quando a adesão ganhou tracção, os governos irlandeses terão pensado que uma das formas de um país insular de 5 milhões de pessoas, muito distante da Mitteleuropa, contrariar a vantagem de mercados internos dez vezes maiores do que o seu, com grandes multinacionais nativas cujos centros de decisão e principais pólos de produção de conhecimento jamais os abandonariam, seria usar a fiscalidade das empresas para atrair centros de produção ou conhecimento dessas grandes multinacionais, ou de outras de países terceiros, como os EUA, com os quais tinha relações mais próximas e grandes afinidades. Se o Brasil fosse comparável aos EUA não faria sentido fazermos o mesmo? Na Europa, esta visão é partilhada por um conjunto apreciável de países pequenos, muitos deles adjacentes ou no âmago da Mitteleuropa, como o Luxemburgo, a Holanda, a própria Áustria (que, ao longo dos tempos, também foi introduzindo regimes específicos muito competitivos na sua legislação fiscal), os países bálticos, a Hungria, a Eslovénia, que reduziram com grande intensidade as suas taxas de IRC. Todos eles párias fiscais, com certeza. Aliás, o mapa das taxas de IRC na Europa publicado pela Tax Foundation (uma fundação norte-americana) mostra Portugal atrás apenas da França por ordem decrescente de taxa de IRC, a mais de dez pontos percentuais de uma boa parte daqueles países, para além dos países nórdicos, com taxas entre 20% e 22%. E nem se diga que a taxa efectiva portuguesa de 31,5% só se aplica aos lucros acima de 35 milhões de euros: acima de 7,5 milhões de euros, um nível de lucro perfeitamente negligenciável para uma grande empresa europeia, americana ou asiática, a taxa efectiva é de 27,5%, muito superior às congéneres dos países europeus comparáveis.

Porém, há que reconhecer que o que vem dito não responde ao dilema gastroalcoólico da moralidade da dupla irlandesa com sanduíche holandesa ou do single malt irlandês a que alude o artigo de Bárbara Reis. É verdade que se trata de esquemas que eram permitidos pela lei irlandesa e que as omissões das autoridades fiscais irlandesas revelaram, no mínimo, pouca boa fé perante os parceiros europeus. O problema aqui e em geral na tributação das empresas, é que esses parceiros sempre conheceram a forma como funcionava a lei irlandesa e esta estava perfeitamente em linha com a lei e jurisprudência europeias. Aliás, a referência à acusação da Comissão Europeia de violação das normas sobre auxílios de Estado por parte da Irlanda no caso Apple peca por falta de actualidade, pois o TJUE veio afirmar a legalidade da actuação das autoridades irlandesas (o caso ainda não está definitivamente encerrado). Mas em matéria de ética interestadual na área fiscal, a Irlanda é mesmo a bête noire? Decididamente, não. A começar pelos EUA e pelas suas sucessivas administrações, nomeadamente Bush e Obama (!), que são os manifestos autores morais e materiais do gigantesco subsídio de Estado que foi permitirem que as suas multinacionais acumulassem nos verdadeiros offshore dezenas de milhares de milhões de dólares de lucros ao tributarem apenas a sua repatriação. Depois, temos todo o Benelux, Malta, Hungria e alguns outros que sempre acalentaram regimes fiscais especiais e acordos simplificados com os seus Fiscos (“rulings”). Mas, helas (!), temos também a Suécia, que, sob pretexto da defesa da coerência do sistema fiscal internacional, se opôs ao digital services tax europeu, não se sabendo se a Spotify sueca terá tido alguma coisa que ver com isso; temos também a paladina da moralidade fiscal europeia, a Alemanha, que conseguiu consagrar numa Directiva antiabuso (a “ATAD”) a norma mais fiscal mais reacionária e anti-integração de que me recordo, a regra sobre “tributação à saída”, que erige um muro fiscal intransponível por uma empresa alemã que, por exemplo, queira transferir para Portugal a produção de uma máquina ou de uma peça dessa máquina mesmo sem intuito fiscal. E Portugal? Por esta ordem de ideias, Portugal pode com justeza ser acusado de ser a offshore dos cidadãos europeus, ao instituir o regime dos residentes não habituais que permitiu que tantos pensionistas europeus, e não só, se tivessem mudado para o nosso país, comprado residências e consumido nos nossos restaurantes ou campos de golfe (regime, aliás, que mereceu duras reacções internacionais), recebendo pensões isentas.

Afinal, em que é que a segurança, a boa gastronomia, o bom clima e boas praias se distinguem da circunstância de ser anglófono e de ter uma importante comunidade emigrante nos EUA? Para além do valor acrescentado do que se atrai, a distinção é também o tempo e o modo: a Irlanda tem aproveitado as suas vantagens desde há muito tempo e com uma constância e fiabilidade que criou a confiança e o efeito multiplicador que nem a criatividade estatística consegue disfarçar. Já em Portugal, o velho provérbio tem, ainda e sempre, um twist: “se não conseguires vencê-los, denigre e inveja-os de morte”.

  • António Pedro Braga
  • Sócio da Morais Leitão

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