Denunciar ou Ser Cúmplice?

  • Patrícia Azevedo Lopes
  • 17 Setembro 2025

Patrícia Azevedo Lopes alerta para as obrigações de todos os envolvidos na indústria seguradora para com o não pactuar com situações dúbias de legalidade. Tem consequências para além das éticas.

No ordenamento jurídico português, a prevenção e repressão da criminalidade constituem responsabilidades não apenas do Estado, mas também das entidades privadas que, pela natureza da sua atividade, têm acesso a informação sensível ou relevante para a investigação criminal. Entre essas entidades, destacam-se as empresas de seguros, cuja atuação no mercado financeiro e na gestão de riscos as coloca frequentemente em contacto com situações que podem configurar ilícitos criminais.

Um crime público é aquele cuja perseguição não depende de queixa da vítima ou de qualquer outro interessado. Exemplos incluem o branqueamento de capitais, a burla qualificada, a fraude fiscal, a corrupção e a falsificação de documentos. Nestes casos, logo que haja notícia do crime, o Ministério Público tem o dever de instaurar o inquérito.

Qualquer autoridade judiciária ou entidade policial que tiver notícia de um crime público deve comunicá-lo imediatamente ao Ministério Público. Já as entidades privadas, entre as quais as empresas de seguros, estão abrangidas por deveres legais e regulamentares específicos que lhes impõem a obrigação de comunicar às autoridades competentes quando detetam indícios de crimes.

As empresas de seguros operam num setor altamente regulado e com forte exposição a riscos de criminalidade económica e financeira. Casos como fraude no reporte de sinistros, branqueamento de capitais através de apólices de seguro de vida ou financiamento do terrorismo podem passar despercebidos sem sistemas robustos de compliance.

A legislação impõe obrigações de colaboração ativa, nomeadamente:

  • A Lei de Prevenção do Branqueamento de Capitais e Financiamento do Terrorismo obriga as empresas de seguros a comunicar ao DCIAP e à UIF da Polícia Judiciária todas as operações suspeitas;
  • A regulamentação da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) reforça os deveres de reporte e diligência;
  • O Código Penal consagra a obrigação de participação de crimes públicos sempre que existam indícios suficientemente sérios.

O incumprimento da obrigação de participação pode gerar:

  • Responsabilidade contraordenacional e coima, aplicável pela ASF;
  • Responsabilidade penal, se se verificar encobrimento ou favorecimento pessoal;
  • Responsabilidade civil, se a omissão causar danos a terceiros.

Assim, o silêncio ou a omissão perante a suspeita de um crime público não constitui apenas uma falha ética, mas também um risco jurídico e reputacional significativo para a empresa de seguros.

Cumprir a obrigação legal de participação exige mais do que conhecimento normativo; requer uma cultura de compliance transversal, com mecanismos internos de prevenção e deteção. Exemplos de boas práticas incluem:

  • Formação regular dos colaboradores em ética, branqueamento de capitais e fraude;
  • Criação de canais internos de denúncia (whistleblowing), protegidos e eficazes;
  • Desenvolvimento de sistemas de monitorização e análise de padrões suspeitos;
  • Envolvimento da alta direção no patrocínio de políticas de integridade.

A obrigação de participação de crimes públicos pelas empresas de seguros não é apenas um imperativo legal, é sobretudo um elemento essencial de confiança no setor segurador. Num mercado baseado na gestão de riscos e na proteção dos interesses dos tomadores e beneficiários, a colaboração ativa na deteção e denúncia de ilícitos contribui para a solidez do sistema financeiro, a transparência das operações e a defesa do interesse público.

No fim, a obrigação de participação de crimes públicos não é uma mera formalidade; é a fronteira que separa a conivência da integridade e que define se uma empresa de seguros é apenas um operador de mercado ou um verdadeiro guardião da confiança pública.

  • Patrícia Azevedo Lopes
  • Sócia ATLAW

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