Energia mais limpa, mas também com faturas mais inteligentes

Portugal tem vantagens estratégicas: Uma matriz elétrica limpa, uma regulação credível e uma sociedade consciente do desafio climático. O passo seguinte é alinhar o sinal de preço com esses méritos.

Depois de repensarmos os leilões e os contratos por diferença (CfDs), neste artigo vamos olhar para o outro lado da transição energética: como transformar energia mais limpa em energia mais acessível — modernizando as tarifas, os impostos e os encargos que ainda tornam a eletricidade mais cara do que deveria ser.

Porque devemos preocupar-nos com preços altos

Portugal e a União Europeia têm motivos de orgulho. Mais de 60 % da eletricidade nacional já provém de fontes renováveis, e os preços grossistas (no mercado OMIE) estão entre os mais baixos da Europa. No entanto, os consumidores — famílias e empresas — continuam a pagar faturas muito superiores às dos seus concorrentes nos Estados Unidos.

Segundo a Eurostat e a EIA, em meados de 2025:

  • O preço médio da eletricidade residencial nos EUA ronda 17 cêntimos/kWh;
  • Na UE, a média situa-se em cerca de 29 cêntimos/kWh;
  • Em Portugal, entre 20 e 25 cêntimos/kWh, consoante o contrato e o escalão.

Esta diferença não se explica pelos custos de produção — o mercado grossista português regista preços frequentemente inferiores aos americanos. O desfasamento resulta sobretudo dos encargos adicionados ao longo da cadeia até ao consumidor final: tarifas de acesso, impostos e taxas específicas.

O que compõe o preço final

Cada fatura elétrica portuguesa incorpora três grandes blocos:

  1. Energia e comercialização, que refletem o custo de geração e fornecimento do kWh;
  2. Tarifas de Acesso às Redes, definidas pela ERSE, que remuneram o transporte e a distribuição e incluem custos de interesse económico geral (CIEG);
  3. Impostos e taxas, como o IVA, o Imposto Especial de Consumo (IEC) e a Contribuição Audiovisual (CAV).

Em média, na união europeia 27 % do preço final da eletricidade corresponde a impostos e encargos — em Portugal, a proporção é ainda superior. Estes níveis elevados de preços geram um efeito perverso: como o preço base da eletricidade é mais alto do que o do gás, uma percentagem semelhante traduz-se numa carga absoluta muito superior. O resultado é obvio – queremos electricidade limpa e seguimos uma estratégia de descarbonização que consiste em eletrificar vários setores, mas no fundo continuamos a dificultar este processo.

O sinal que o preço da eletricidade envia ao mercado ainda está enviesado

Segundo a Eurostat (1.º semestre de 2025):

  • As famílias europeias pagam, em média, €0,287/kWh na eletricidade, dos quais € 0,079/kWh são impostos e encargos (27,6 % da fatura);
  • No gás natural, o preço médio é € 0,114/kWh, com € 0,036/kWh em impostos e encargos (31,1 %);

Em Portugal, a eletricidade custa € 0,239/kWh, com cerca de € 0,080/kWh de carga fiscal, e o gás € 0,13/kWh, com € 0,039/kWh de impostos. Ou seja, o kWh gerado por eletricidade suporta mais do dobro da carga fiscal em valor absoluto face ao kWh de gás — mesmo quando a eletricidade é cada vez mais limpa. O resultado é um sinal de preço enviesado: penaliza-se o consumo elétrico e favorece-se, indiretamente, o consumo de combustíveis fósseis.

Como observou recentemente o CEO da EDP, Miguel Stilwell d’Andrade, “muitos governos usam a fatura de eletricidade para cobrar impostos, o que a torna opaca e distorce incentivos”. E acrescentou: “Precisamos de simplificar a fatura e reduzir a parte ‘não-energia’ para recuperar competitividade”. As suas declarações ao Financial Times (acesso pago, em inglês) sublinham exatamente o problema aqui discutido: a estrutura fiscal e tarifária está desalinhada com os objetivos da transição.

Competitividade e eletrificação: O novo teste de política pública

À medida que a UE aposta numa indústria verde — do hidrogénio às bombas de calor (os chamados heat pumps) e aos veículos elétricos —, o custo da eletricidade torna-se um fator determinante de competitividade. Um imposto ou tarifa mal calibrado pode anular anos de investimento em inovação. A eletrificação precisa de previsibilidade e de preços marginais coerentes com o custo real do sistema.

Enquanto a estrutura fiscal e tarifária da eletricidade for reformada, a eletrificação europeia permanecerá estagnada. Portugal pode — e deve — liderar a mudança, transformando-se num laboratório de políticas para tarifas mais inteligentes e competitivas.

O que o governo já fez para aliviar a fatura

Portugal tem vindo a agir:

  • IVA reduzido (6 %) nos primeiros 200–300 kWh/mês para contratos até 6,9 kVA;
  • Medidas de contenção tarifária de cerca de 400 milhões para 2026, financiadas por receitas de leilões do programa ETS e impostos sobre produtos petrolíferos;
  • Tarifa social automatizada, que protege cerca de 750 mil famílias;
  • Redução de encargos para consumidores com consumo intensivo, aprovada pela Comissão Europeia e associada a contratos de energia renovável (PPAs).

Estas medidas atenuam o problema, mas não alteram a arquitetura estrutural da fatura.

O que ainda falta resolver

  1. Encargos por kWh — Custos históricos e políticas públicas continuam incorporados em cada unidade de consumo, mesmo quando o kWh é limpo.
  2. Tarifas de rede médias — A maioria dos consumidores paga um valor plano, sem refletir o custo horário real do sistema.
  3. Fiscalidade desatualizada — O IEC e parte do IVA tratam eletricidade e gás como equivalentes, apesar da diferença nas emissões.

Um roteiro para faturas 2.0

  1. Rebalancear a fiscalidade baseada na contribuição para emissões de carbono. Apoiar a revisão da Energy Taxation Directive, reduzindo gradualmente a carga sobre eletricidade limpa e revendo isenções fósseis.
  2. Deslocar encargos históricos para fora do kWh. Custos de política e legados devem migrar para o Orçamento do Estado ou para componentes fixas neutras (capacidade/ ligação).
  3. Tarifas de rede com sinal horário e por capacidade. Reforçar a diferenciação, premiando flexibilidade e reduzindo custos de pico.
  4. Transparência e literacia. Separar na fatura o que é energia, o que é rede e o que são impostos e políticas.
    Justiça social. Qualquer reforma deve proteger as famílias vulneráveis com apoios direcionados.
    Conclusão: competitividade e confiança

Portugal tem vantagens estratégicas: Uma matriz elétrica limpa, uma regulação credível e uma sociedade consciente do desafio climático. O passo seguinte é alinhar o sinal de preço com esses méritos. Reformar tarifas e impostos não é uma rutura, é modernização institucional. Ao fazê-lo, o país pode tornar-se uma referência europeia em eletricidade acessível, justa e competitiva — onde cada kWh renovável é também um kWh economicamente vantajoso.

  • Colunista convidado. Professor Catedrático de Políticas Públicas e Economia da University of Southern California

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