Entre a Ciência e a Arte

  • Nuno Oliveira Matos
  • 1 Junho 2025

A diferença entre um bom provisionamento e um erro de estimativa não está apenas nos números, considera Nuno Oliveira Matos, reforçando que ao rigor matemático se deve adicionar bom senso.

No coração técnico de qualquer empresa de seguros de ramos reais, o provisionamento de sinistros é simultaneamente um exercício de rigor estatístico e um ato de julgamento experiente. Antes que qualquer linha de dados seja introduzida num software de reserving, o verdadeiro trabalho já começou, e bem longe dos algoritmos! De que falamos?!

De compreender o negócio. De avaliar, com discernimento, o passado para projetar o futuro. De garantir que as decisões que tomamos hoje resistem ao teste do tempo e, mais importante, do escrutínio. E sim, isso implica ir muitíssimo além do Chain-Ladder ou de qualquer outro método determinístico ou estocástico mais sofisticado.

O provisionamento, seja relativo a serviços passados ou futuros, exige muito mais do que domínio técnico. Tudo começa com uma análise preliminar robusta: séries temporais estatisticamente significativas, dados de qualidade, segmentação criteriosa da carteira, conhecimento profundo da operação e do negócio, compreensão do enquadramento jurídico e regulatório, e, não menos importante, da cultura da própria empresa de seguros.

A boa governança do provisionamento exige mais do que comités e atas. Exige também challenge interno: olhar para os resultados e perguntar “faz sentido?”, “reflete a realidade?”, “onde estamos a assumir demasiado ou de menos?”.

O objetivo pode variar: obter a melhor estimativa (best estimate), um intervalo de confiança ou até uma distribuição completa de resultados possíveis. Mas só há uma única certeza em todo este processo: a incerteza. É precisamente aqui que entra a arte!

Embora se exija rigor técnico e métodos estatísticos, que eliminem enviesamentos de prudência ou otimismo, o reserving não é, nem nunca será, uma ciência exata. É, na verdade, uma sucessão de decisões críticas, cada uma ancorada na melhor evidência disponível, mas sempre sujeita, sobretudo, a julgamento profissional.

Um atuário experiente, com conhecimento profundo do negócio e sensibilidade ao ambiente operacional, será capaz de discernir se uma estimativa representa de facto o melhor ponto central de uma distribuição de possíveis desfechos. E fará isso equilibrando o uso de métodos quantitativos com uma avaliação crítica da realidade qualitativa.

A boa governança do provisionamento exige mais do que comités e atas. Exige mestria e uma abordagem coerente ao longo do tempo, com processos claros, assunções bem documentadas e uma cultura organizacional que valorize a verdade dos números, mesmo quando desconfortáveis. Exige também challenge interno: olhar para os resultados e perguntar “faz sentido?”, “reflete a realidade?”, “onde estamos a assumir demasiado ou de menos?”.

O departamento legal e as funções-chave de gestão de riscos e de cumprimento devem estar presentes. A verosimilhança de eventos catastróficos, litígios em curso, alterações legislativas e tendências de mercado devem ser incorporados. Copulas e modelação avançada podem e devem ter lugar, mas não substituir o bom senso.

No fim, o provisionamento não é apenas um exercício técnico. É uma afirmação de ética e de integridade. É onde a técnica encontra o caráter. E num setor onde a confiança é o maior ativo, esse pode bem ser o fator diferencial.

Porque, no fim, a diferença entre um bom provisionamento e um erro de estimativa não está apenas nos números. Está na coragem de os interpretar com lucidez, independência e consciência do que está verdadeiramente em jogo.

  • Nuno Oliveira Matos
  • Sócio da Carrilho & Associados, SROC

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