Europa, Berlim ou o Manual da Zoologia Fantástica
A questão política que se coloca para o futuro da Alemanha e da Europa é a da supremacia da visão da Alemanha Ocidental.
A propósito do Muro de Berlim é toda a Europa que se eleva e que se derruba. O Muro do Mediterrâneo é talvez hoje a versão pós-ideológica do Muro de Berlim, um Muro imaginário que separa política e economicamente dois Mundos. E por este Muro navega todo um bestiário de criaturas fantásticas – negros, árabes, cristãos, muçulmanos, toda a espécie de dragões, animais alados que fogem da miséria e da guerra e que se alistam na Grande Armada que se dirige para a Europa.
A Europa é o Templo da Liberdade e os viajantes são um Episódio das Sombras, uma seta apontada ao coração da Identidade Europeia. Mesmo que não exista uma Identidade Europeia, o caleidoscópio das Sombras domina e mantém a ameaça sobre o Velho Continente. Muros em Melilla, Muros em Lesbos, Muros em Lampedusa. Muros políticos derrubados que persistem politicamente na geografia da memória.
Nos escombros das secções do Muro de Berlim espalhadas pelo Mundo, não há verdadeira liberdade nos ruidosos grafittis que anunciam a emancipação dos povos, a função libertadora da palavra, as imagens criadoras de um Mundo Novo. Nestes gestos simbólicos registados no Muro, os sonhos minam e reconstroem a paisagem agreste, agressiva, inumana, do cimento que separava a liberdade da servidão. Anarquistas e arquitectos riscaram coloridos os traços políticos de um Mundo que tardava adiado, marcaram-no no Muro que como uma fortaleza desafiava a gravidade.
Com o beijo de Brezhnev e Honecker projectado num segmento monumental do Muro, eis-nos de volta a Berlim, de regresso à Babilónia, de novo no centro da Europa onde se cruzam todos os olhares trinta anos após a Queda do Muro. Mas trinta anos após a Queda do Muro não se pode falar da Alemanha como uma entidade política homogénea.
O Leste vota tendencialmente na AfD e no Die Linke; o Ocidente mantém o equilíbrio entre a CDU, o SPD e os Verdes. A Leste a atracção pelas forças populistas, contra a União Europeia, contra a NATO e pro-Putin. A Ocidente a estabilidade politicamente alicerçada na União Europeia e na pertença ao Pacto Atlântico da NATO. É um paradoxo que oscila entre a ironia de um país que partilha um futuro comum e um passado distinto.
Os Conservadores afirmam que este é o resultado do preço político da Ocupação Soviética; os Liberais sublinham a necessidade de se atrair mais investimento privado para o Leste; os políticos do Leste denunciam neste panorama o resultado da profunda desindustrialização e “privatização predatória” levada a cabo pelo “capitalismo ocidental”. Entretanto, desde 1990, as transferências e os apoios financeiros do Ocidente para o Leste atingem o valor astronómico de 2 triliões de Euros. A “Reunificação” arrastou a Alemanha Ocidental para o mito Prussiano da “Unificação”, tantas vezes descrito e celebrado por Bismarck – o dever patriótico de subsidiar a parte Leste economicamente moribunda.
De modo extraordinário e talvez inexplicável, nenhuma força política sublinha hoje o facto de a Alemanha nunca ter estado “Unificada” no passado, mas que foi derrotada, conquistada e anexada pela Prússia de Bismarck em 1870.
Conrad Adenauer, fundador da Alemanha Ocidental e conhecedor da História, sempre insistiu na separação entre a Prússia e a Alemanha. Sempre que atravessava o Rio Elba em direcção a Berlim, Adenauer afirmava que viajava para a “Ásia”. No entanto, após a Segunda Guerra Mundial, o estadista sempre defendeu publicamente a “Reunificação” na esperança de que esta nunca acontecesse.
Politicamente, a grande questão da Prússia liga-se ao conceito de nação “socialmente orientada para a dominação”, a convicção cultural da existência de “nós” e de os “outros”, tudo em conjugação política com uma elite centralista e dominadora. Esta seria a base do argumento político de Friedrich Hayek quando identifica na Prússia o modelo para todos os Regimes Totalitários à Esquerda e à Direita.
De acordo com alguns historiadores e filósofos, o grande cisma que persiste entre as duas partes da Alemanha poderá ser atribuído a esta especificidade política e cultural que se encontra a Leste – um facto extraordinário e absolutamente improvável, ou talvez não, é que a “cápsula do tempo” que manteve viva uma cultura política típica de uma emanação da Prússia tenha sido preservada pela dominação de um Regime Socialista. O Muro de Berlim colapsou na realidade física, mas vive e sobrevive na perspectiva de uma sensibilidade Ocidental e na identidade de uma visão típica do Leste.
Na situação política observável trinta anos após a expulsão do Muro de Berlim por uma coligação de cidadãos e por um exército de gruas, a questão política que se coloca para o futuro da Alemanha e da Europa é a da supremacia da visão da Alemanha Ocidental. Nesta interpretação, a linha que separa a Europa Ocidental e a Europa Oriental coincide no espaço e no tempo da História com o curso do Rio Elba. Nas palavras de Adenauer, ao “espírito de Leste” não poderá ser permitida a veleidade da dominação política, pois tais circunstâncias implicam a deslocação da Alemanha para fora do seu lugar histórico, cultural e politicamente consagrado no coração da Europa Ocidental.
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