Hinos Nacionais
O Brexit é uma dose metafórica de novichok que contamina a Europa. Na analogia histórica de Niall Ferguson, o Brexit é o equivalente moderno do corte com Roma feito por Henrique VIII.
Em cada país da Europa o Brexit é interpretado em função das melodias nacionais. Mas a União Europeia esconde-se no silêncio ou escapa-se numa unanimidade difícil de entender e impossível de explicar. Que se façam ouvir os povos da Europa.
Em França o Brexit é sentido como uma “catástrofe abençoada”. Não havendo espaço para grandes preocupações políticas, fica apenas o vazio que é preenchido com grandes planos políticos e sonhos de uma hegemonia francesa inscrita na História. A visão de uma União que pode regressar ao espírito original dos pais fundadores enche os discursos da nação, uma União resgatada da ditadura dos mercados financeiros, do predomínio das oligarquias e sobretudo da influência e da obstrução permanente da pérfida Albion. O Brexit só poderá funcionar como um catalisador para as grandes reformas na Europa, devolvendo a União aos cidadãos, numa espécie de justiça moral que reafirma a eterna sabedoria dos vetos de De Gaulle à presença da Grã-Bretanha na União. Por outro lado, fica a sensação de uma inefável superioridade moral. Para além do Canal Mancha fica um país ultra-liberal, fechado à livre circulação de pessoas e de ideias, um país em forma de aterro político e social, incapaz da cooperação internacional, incapaz de governar para os mais desfavorecidos e representante da conjugação do pior de dois mundos – a ascensão da xenofobia e o predomínio de uma visão extrema da liberdade dos mercados como a ultima ratio da própria razão de estado.
Na Alemanha o Brexit contribui para uma mudança sísmica na percepção dos alemães sobre a importância da União no futuro da nação germânica. Depois da crise na Síria e da vaga de refugiados, depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, depois da anexação da Crimeia, depois da eleição de Trump na América, depois dos gilets jaunes, a Alemanha interioriza o Brexit, não apenas como uma nova dimensão da disfunção que se vai acumulando no sistema internacional, mas sobretudo como um reminder da importância e dos valores da União para a definição do destino da Alemanha na balança de poderes. A visão idealista baseada na irreversibilidade do projecto europeu é agora substituída por uma abordagem politicamente mais modesta e pragmática – uma organização que permite que alguns países prosperem em segurança face a um mundo económica e moralmente em deficit de desempenho. Psicológica e politicamente, a Alemanha parece atravessada por um clima de profunda decepção, com laivos quase elegíacos relativamente a uma ordem política perdida, com discursos que revelam o estoicismo de alguma melancolia existencial. A Alemanha líder da Europa, mas também a Alemanha em auto-negação e dúvida sobre a sua real liderança, percebe que o Brexit é o sinal político de uma profunda e dramática mudança de direcção nos destinos do projecto europeu. No entanto, e no espírito de Hegel, a Alemanha opta pela visão silenciosa de quem obedece e não de quem domina. Estranha estratégia que enche a Europa de um silêncio apreensivo.
Na Bélgica, as palavras “patriotismo”, “controlo”, “soberania”, têm outro significado num país com menos de 100 anos e definido numa lógica política pós-nacional. O Brexit é observado com curiosidade e indiferença, o resultado de uma associação política entre a ineptocracia e o fetichismo das pequenas diferenças. Na Bélgica, para Flamengos e Valões, o Brexit é o sintoma de uma nação intoxicada por uma identidade política transformada num verdadeiro mito – pátria política do bom senso, da moderação, da tolerância, do pragmatismo, dos políticos cultivados, da “Mãe dos Parlamentos”. Num gesto de narcisismo político ou de nativismo pré-moderno, para os belgas, o Brexit é apenas a coagulação de um corpo estranho, o culminar de décadas de duplicidade e de cinismo, daí a mais que perfeita indiferença relativamente à saída da Grã-Bretanha da União Europeia. O porto de ZeeBrugge está plenamente preparado, sem necessidade de planos de contingência, para a realidade do Brexit. Na visão sarcástica da Bélgica o único lugar que não é “Brexit-proof” é a própria Grã-Bretanha.
Na Suécia o Brexit é a expressão de um drama político. Com posições políticas próximas dos argumentos britânicos para o Brexit, o país observa esta desvinculação com ambivalência. Para alguns sectores políticos na Suécia, a decisão da Grã-Bretanha recentra a nação no lugar de um “Norte Luminoso” para todos os eurocépticos na Europa.
Com a Bulgária preocupada com o aprofundamento da dimensão periférica; com a Polónia inquieta com o regresso dos emigrantes e com o afastamento de um aliado; com a Croácia, experiente em tantas alianças, repleta de bandeiras nazis à solta num estádio em Split; com a Grécia preocupada com os Mármores de Elgin e a Espanha com a soberania de Gibraltar; com o silêncio de Itália e com a litania euro-unida de Portugal, como é possível uma posição de unanimidade a 27?
O Brexit é uma dose metafórica de novichok que contamina a Europa. Na analogia histórica de Niall Ferguson, o Brexit é o equivalente moderno do corte com Roma feito por Henrique VIII.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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