Já podemos falar sobre a reforma do Estado?
Os funcionários públicos revoltam-se contra o Governo mais amigo - e com razão, porque Costa fez o fácil e piorou o difícil. É urgente requalificar a função pública. E ir à gaveta que Passos fechou.
1. Greves contra os amigos?
Parece um barril de pólvora. O Governo que António Costa diz ter sido muito amigo da Administração Pública recebe uma avalanche de protestos de vários setores da mesma Administração Pública. Parece um contrassenso, mas é só consequência lógica: o que este Governo fez foi o fácil. O difícil continua por resolver – ou pior do que estava.
Há sindicatos que abusam, como os dos enfermeiros. Fazer 50 greves num só ano é querer curar um doente parando-lhe o coração. Se o direito à greve é para usar, ele não pode ser uma licença para matar.
Mas nem o abuso, nem as reivindicações absurdas (400 euros de aumento e reforma aos 57 anos) tiram lógica a um argumento que é comum às dezenas de carreiras que vão manifestando: há anos que pedem uma revisão das suas carreiras, as que estiveram congeladas; há uma década que não recebem um aumento. Chega uma altura em que custa ouvir tanta promessa e vê-la sempre adiada.
A verdade é que o Governo tem razão nas contas. Porque se era fácil decretar uma reposição de rendimentos e de horas de trabalho, essa facilidade tem um custo. E um custo que é permanente. Rever agora as carreiras de enfermeiros, técnicos de saúde, polícias, militares, professores custaria o céu e outro mundo. Não há, claro, como fazê-lo agora.
O problema é que o Governo não só não resolveu o problema estrutural da Administração Pública como o piorou. E o problema é, cada vez mais, o da qualificação dos trabalhares do Estado. Uma pergunta: quem quer ser hoje funcionário público, sabendo que não terá um bom salário, não terá aumentos, não terá uma carreira ascendente, não terá requalificação, dificilmente terá reconhecimento?
Sim, a última década e meia de crise e apertos desvalorizou a administração pública. E o que este Governo fez, na melhor versão, foi repor os mínimos; no cenário mais pessimista foi agudizar o problema.
2. Dois salários mínimos, um problema
Vejamos o que aconteceu agora com o salário mínimo nacional. Cumprindo uma promessa eleitoral, Costa passa-o para os 600 euros. Mas, com os olhos postos nas eleições, aplica-o só ao setor privado. No Estado, o salário mínimo será mais do que nacional: passa a ser de 635 euros. Bom? Para os que receberão mais, claro que sim. Agora pense em todos os outros. Todos os 600 mil que restam e que, em 2019 ficarão como estavam… em 2010.
Não há dinheiro para tudo, claro. Mas ponha-se agora na posição daqueles trabalhadores do Estado que recebem pouco mais do que o mínimo: 670 euros ao mês, por exemplo. Estarão no 4º escalão da Administração Pública, pelo que tiveram que estudar e/ou trabalhar para subir três degraus. O que sentem eles agora?
Pense também naqueles mais qualificados e/ou que estão a trabalhar no Estado há 20/30 anos. E sabendo eles ao ritmo que a coisa avança, imagine que expectativa terão eles de uma progressão que lhes dê devido reconhecimento remuneratório. Dá vontade de continuar? Sendo um profissional qualificado e com ofertas do setor privado, que vai querer continuar no Estado? Acha que se tiver uma boa hipótese fora do país que fica por cá? Pense outra vez (a resposta, lamentavelmente, não vai mudar).
Hoje, na Administração Pública não há mérito. Não há incentivos. Não há, portanto, vontade. E no fim de um Governo que, durante quatro anos, prometeu acabar com a austeridade, isso custa. Talvez assim se perceba melhor por que protestam tanto os funcionários públicos contra um Governo que foi tão amigo.
3. Público contra o privado?
Lembra-se da crítica que se fazia a Passos Coelho? De que, com os cortes, estava a dividir a sociedade entre os que trabalhavam para o Estado e os que trabalhavam no privado?
Pois agora veja o que aconteceu depois. Com a retoma a chegar em 2014, os empregos chegaram ao setor privado, mas nem por isso ao público; os salários e carreiras começaram a mexer-se no privado, enquanto o público só recuperava a tabela; os mais qualificados viram o elevador social mexer-se ligeiramente, os do Estado continuaram a sair dele. Eis, portanto, a sociedade dividida em dois: privado mexe, de acordo com o mercado; público estagna – e acaba suspenso por greves que contestam a estagnação.
Em desespero, os governos vão fazendo mudanças cirúrgicas – este como o anterior. Dois exemplos: sem técnicos para acompanhar os desempregados, a Segurança Social passa para os privados a responsabilidade de lhes procurar empregos; sem técnicos para fazer um orçamento, as Finanças criam uma nova carreira para os técnicos da direção-geral, para evitar que eles migrem para o privado.
Como as outras carreiras não mexem (porque não dinheiro para mais) só se ganha confusão entre carreiras, desigualdade salarial, injustiça entre pares. O que é que um alto quadro das Finanças tem a mais do um da Segurança Social?
4. E no Estado, já podemos mexer?
Por tudo isto, talvez não seja já ousado deixar um desafio que até há pouco seria mal entendido: e se voltássemos a falar sobre uma reforma do Estado?
Sim, a minha opinião é que o trabalho que está pela frente é hercúleo. Vai ser preciso pegar nos 670.000 trabalhadores e dar um rumo às dezenas de carreiras. Vai ser preciso dar-lhes incentivos. Vai ser preciso fazer tudo com mínimos de equidade entre todos. E vai ser preciso fazer tudo isso sem destruir outra vez as contas do país (para não voltarmos à estaca zero, cortando outra vez nos salários).
Eu sei, parece uma equação impossível. Mas só o será se, quem vier em 2019, não tiver força e engenho para discutir verdadeiramente a requalificação da Administração Pública, a avaliação dos funcionários, os serviços que se calhar até é possível externalizar (com peso e medida). Se calhar, até podemos pegar nos 1001 suplementos remuneratórios criados para cada carreira e ver quais fazem sentido e quais não – aquela reforma que até o austero Passos acabou por meter na gaveta. Ou até a possibilidade de o Estado dispensar aqueles de que não precise.
Vá, chamem-me nomes. Ou pelo menos discutam alternativas. O que me parece evidente é que, assim, o Estado não vai lá.
Notas soltas da semana
- Serviços demasiado mínimos. O que os enfermeiros estão a fazer é indigno do direito à greve. Dizer que não morreu ninguém é, aliás, imoral. Por mim, via verde para traçar novos limites.
- Caixa negra. Se Marques Mendes tem direito a conhecer a auditoria à Caixa e nos diz que houve gestão danosa entre 2005 e 2008, por que não podemos nós conhecê-lo?
- V – de vergonha. Armando Vara, antes de se entregar, decidiu atirar lama para cima de um juiz. Boa viagem.
- Banho de ética. A Comissão de Ética do Parlamento fez 52 pareceres sobre alegadas incompatibilidades dos colegas deputados. E nenhum apontou um problema. Alguém nos pode enviar esses relatórios – ou era ética a mais?
- Pequenos passos. Mário Centeno vai hoje ao Conselho Europeu defender a reforma da zona euro que conseguiu atingir no Eurogrupo. Será pequena, mas como diria Hamilton…
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