Legislar em prol da privacidade

Não serão as empresas que lucram com a morte da privacidade a proteger-nos. Têm de ser os governos a proteger-nos dos riscos da nova era da vigilância.

Esta semana, o fundador do Facebook parece ter tido uma epifania. Depois de passar anos a abusar da confiança de um quarto da humanidade, de ser parcialmente responsável por bullying, genocídio, promoção de discurso nazi e ataques à democracia, o senhor Zuckerberg disse que quer agora “dar às pessoas a liberdade para serem elas próprias”.

Sejamos claros: É tudo mentira. Enquanto o modelo de negócio do Facebook depender da venda dos perfis dos seus utilizadores aos anunciantes para que estes os manipulem de forma a vender produtos e ideias, nada de essencial vai mudar. Mas a guerra da privacidade merece ser travada, porque ela é uma conquista social que precisa de ser protegida – e isso exige medidas concretas que terão de ser executadas por via legislativa.

A ameaça à privacidade é generalizada e os exemplos são mais que muitos: as smart tv que se compram em qualquer loja de eletrodomésticos escutam os utilizadores e registam todos os seus padrões de consumo, sem que exista qualquer forma de controlar o que acontece com a informação; as colunas inteligentes (como a Alexa ou a Google Home) estão sempre à escuta e, mais uma vez, não há forma de controlar a informação recolhida; o Facebook tem tantos dados sobre os utilizadores que consegue traçar perfis mais completos do que os próprios familiares de cada utilizador; a Google arquiva todos os dados, incluindo os movimentos, dos seus utilizadores; a maioria dos equipamentos de segurança para proteger menores e até muitos dos seus brinquedos acumulam informação sobre crianças que poderão ser usados contra elas no futuro.

Todos estes dados estão a ser usados para criar sistemas artificiais que antecipam os comportamentos. Com dados suficientes, consegue-se prever como um utilizador vai reagir a um estimulo – seja para fazer um like, comprar uns sapatos ou comer mais uma notícia falsa. Não são só os ataques à privacidade que isto permite, são também os riscos de segurança que aumentam exponencialmente. Com a massificação da internet das coisas, o cenário será muito mais grave.

Mas não é impossível definir limites na privacidade digital. Pelo contrário. Há passos legislativos que podem e devem ser dados a nível europeu e/ou nacional para garantir a privacidade dos utilizadores e garantir ao mesmo tempo a sua liberdade – sem pôr em causa um ecossistema de inovação digital.

A primeira grande medida passa por tornar os cidadãos donos dos seus próprios dados. Aquilo que é chamado social graph é um ficheiro que contém todas as informações de base sobre cada indivíduo, incluindo as suas relações sociais. Passar a propriedade desse ficheiro para a mão do utilizador permitirá que ele o partilhe com quem quiser, podendo até monetizá-lo como bem entender.

Se os utilizadores decidirem partilhar os seus dados com uma determinada entidade, podem fazê-lo em troca de bens ou serviços – com a diferença que o farão de forma consciente, ao contrário do que acontece hoje. Se não passa pela cabeça de ninguém permitir que uma operadora de telecomunicações aceda às conversas privadas dos seus clientes, porque é que o Google há-de ter acesso aos emails ou ao histórico de movimentos dos seus utilizadores?

Mas há mais a fazer: é preciso transparência também ao nível dos algoritmos que são usados sobre os cidadãos. Não é descabido pensar numa entidade de certificação para algoritmos comerciais, com regras mínimas e sistemas de controlo efetivos, capaz de proteger os cidadãos. Se impedimos a discriminação com base na raça ou no género ou nas doenças crónicas de cada um, porque é que aceitamos que existam algoritmos que fazem precisamente essa descriminação de forma a proteger interesses velados?

Outro passo necessário é a exigência de reconhecimento da autoria das mensagens comerciais. Também aqui se trata apenas de aplicar a lei existente aos sistemas digitais: os condicionamentos à utilização de dinheiros públicos para a propaganda política devem estender-se à Google e ao Facebook e estes devem ser responsabilizados se alguém utilizar estes meios para conduzir uma fraude. O mesmo deve acontecer em questões de segurança e saúde pública: se as redes sociais promovem mensagens de ódio porque isso lhes dá tráfego, devem ser responsabilizadas pelas consequências da promoção desse mesmo discurso.

Na verdade, não é preciso muito mais do que bom senso e cultura digital. Esperemos que os legisladores adquiram ambos rapidamente em doses equivalentes.

Ler mais: The Age of Surveillance Capitalism é um livro extraordinário que explica como a privacidade individual e o bem comum estão a ser explorados em prol do lucro de meia dúzia de entidades mal conhecidas. Lê-se como um filme de terror, com a agravante de ser real e de, ao contrário de muitas teorias conspiratórias, estar muito bem defendido cientificamente. Shoshana Zuboff, a autora, foi durante décadas professora de Harvard, tendo introduzido vários conceitos essenciais do digital na gestão – e usa essa autoridade para agora denunciar os riscos da nova era.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Legislar em prol da privacidade

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião