Líquido confinado
O Governo português tem o dever moral e a obrigação democrática de declarar um real e verdadeiro confinamento à altura da crise de saúde pública que a República sofre e continua a enfrentar.
O primeiro-ministro mente quando afirma que ninguém é responsável pelo estado da pandemia. O Governo, os portugueses, a estúpida euforia do Natal, o deslumbramento científico com as vacinas, a lógica que só acontece ao vizinho, mais o pensamento mágico de uma nova manhã sem vírus por intercessão divina neste País abençoado. Resultado final – o confinamento que o primeiro-ministro sempre negou.
É como se o primeiro-ministro tivesse subido a uma árvore e aí ficasse a observar o magnífico horizonte político da Presidência Portuguesa do Conselho Europeu, ignorando os habitantes da floresta nacional como seres pedestres imunes às descargas virais. No topo da árvore da irresponsabilidade e do desinteresse, mesmo com teste positivo ao covid, o primeiro-ministro deixou a curva subir e subir sem parar até chegar ao topo da copa das árvores no reino fantástico das folhas. As folhas amarelas de um Inverno frio e as folhas electrónicas dos despachos toscos de quem enfrenta uma pandemia com um livro de cozinha. Nas árvores europeias mais ou menos próximas, até os primatas do Jardim Zoológico de Berlim contraíram o covid. Estranho Mundo em que as pessoas e os macacos apresentam o mesmo índice de responsabilidade.
Mas o confinamento actual é tímido e envergonhado, mais parece uma coisa a tentar parecer outra, ou alguém que quer imitar o que não sabe, o que não pode, o que não quer, o que não tem coragem. Fecham lojas, abrem estabelecimentos, confina-se uns para não confinar outros, circulam alguns para outros poderem circular nos corredores de casa, tudo mais parece um jogo de tabuleiro em que não se pretende ganhar nada, mas apenas ganhar o tempo dos outros para se atingir um propósito que é de todos.
O novo confinamento é um atalho entre duas cadeias de contacto, acompanhado por um discurso político sentimental e melodramático em que os portugueses caminham noite dentro de mão dada entre uivos e pirilampos. Ninguém tem a coragem política de um século rebelde para enfrentar a pandemia do novo século. O Governo vive num sótão habitado pela demência e decorado pela armadura vazia de um Cavaleiro Fantasma que julga ser Carlos Magno.
O confinamento a que temos direito é uma cidade não terminada e acabada bem à pressa, uma confusão de prioridades e de propósitos onde os critérios políticos atropelam os critérios científicos, enquanto os critérios científicos atropelam os critérios políticos. O confinamento resulta certamente de um estado de necessidade, de um outro estado de emergência, mas emerge sobretudo de um estado aleatório composto bem ao ritmo da tradução das cartas de Tarot.
Cada português parte o baralho, distribui as cartas e age em conformidade com as histórias e os destinos escritos nas estrelas. A este método de governação vamos designar por “estruturalismo místico”. Nesta narrativa negra, os portugueses conseguem pandemicamente viajar no tempo, regressando ao som da marcha dos cuidados intensivos até ao mês de Abril de 2020. Não existe ficção nesta constatação, pois deriva da palavra própria de um primeiro-ministro.
Depois há esta coisa dos “direitos e das liberdades”. Políticos impolutos mas alienados uma vida inteira da questão dos direitos e das liberdades, vêm agora com penitentes orações sobre a liberdade dos portugueses e os direitos dos cidadãos. Se a hipocrisia fosse amarela e o cinismo fosse verde, estes políticos seriam o líquen e o musgo dos edifícios que completam a democracia portuguesa. Afinal o que importa é que os cidadãos tenham uma igualdade de liberdade para serem infectados e que usem o direito inalienável à doença. Livres e infectados com o direito constitucional à morbilidade democrática. Grandes são os valores da República.
Ainda sobre os “direitos e as liberdades”, esta pandemia fez eclodir nos cérebros políticos a vertigem da pequena grandeza, a presença inconsciente e delirante da metáfora de um estado de guerra, um estado em que o Mundo enfrenta a ameaça violenta de um conflito armado. Assim, os políticos agem como se enfrentassem um inimigo humano que deseja a destruição do edifício democrático para poder impor uma Nova Ordem Mundial, sem qualquer fragmento de liberdade ou uma linha de direitos.
Neste cenário, cada político tem dentro de si um Churchill imaginário, que enfrenta uma ameaça existencial e que tem que fazer prova da normalidade, da resiliência e da coragem das instituições democráticas. Neste eufemismo infantil da mentira, ninguém tem de provar politicamente nada contra um vírus que segue apenas a lei da sobrevivência via infecção, mas todos têm de provar politicamente tudo na protecção dos cidadãos que continuam a arriscar as suas vidas todos os dias no labirinto das periferias políticas.
Enquanto Portugal explode com a pandemia, enquanto a Europa arde com as mutações extravagantes do vírus, o Governo português tem o dever moral e a obrigação democrática de declarar um real e verdadeiro confinamento à altura da crise de saúde pública que a República sofre e continua a enfrentar.
As Universidades e as Escolas não estão protegidas por uma qualquer arma biológica infalível. Aqui não há Cisnes Negros. Os Cisnes Negros circulam nas Eleições Presidenciais, entre o malabarismo das palavras, a fantasia das propostas, mais a invenção democrática de abrir uma Universidade na Lua em regime presencial.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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