MIBEL – Um Projeto Verdadeiramente Ibérico

  • Ricardo Nunes
  • 2 Outubro 2024

É inegável que, ao longo dos anos, nos aproximámos de um mercado interno de energia.

No primeiro dia do corrente mês, o MIBEL – Mercado Ibérico de Eletricidade celebrou 20 anos desde a sua formalização. A ERSE – Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, juntamente com os restantes reguladores financeiros e energéticos do MIBEL, decidiu, com justiça e propriedade, homenagear em Braga as duas décadas de um projeto pioneiro e estruturante a nível europeu.

A conferência de homenagem foi um sucesso, contando com muitos dos principais atores do MIBEL, tanto no palco como na audiência, permitindo, de forma mais ou menos oficial, recordar o passado, refletir sobre o presente e, mais importante, preparar o futuro do MIBEL.

Recorrendo um pouco ao passado para contextualizar o “efeito MIBEL”, há 20 anos vivíamos um “boom” dos mercados de commodities em várias partes do mundo, especialmente na Europa. A Europa começou por criar vários mercados regionais de eletricidade, com o objetivo final de constituir um mercado interno de eletricidade. O MIBEL foi o primeiro e, provavelmente, o mercado regional cuja integração foi mais aprofundada e eficaz. Outros exemplos encontram-se nos Países Nórdicos ou no eixo França-Alemanha.

Se os mais “conservadores” ambicionavam um mercado único europeu de energia, os mais “otimistas” acreditavam que seria possível alcançar um preço único de eletricidade competitivo para todos os cidadãos europeus. Contudo, esta ideia foi recentemente desmentida pelo relatório Draghi, onde o autor demonstrou que a Europa perde competitividade em termos de preços de energia face a países como os EUA e a China.

Ainda assim, é inegável que, ao longo dos anos, nos aproximámos de um mercado interno de energia. Com sistemas e algoritmos de negociação comuns, horários de funcionamento dos mercados semelhantes e agentes a atuarem cada vez mais nos diversos mercados europeus, a integração do MIBEL no mercado único europeu é já uma realidade, nomeadamente no mercado diário (SPOT).

Não fomos mais longe devido a limitações estruturais, como o número insuficiente de interligações europeias (também referido no relatório Draghi) e as diferenças regulatórias entre os países. No entanto, o grau de integração atual é incomparavelmente superior ao que existia há 20 anos. Isso, por si só, já constitui uma conquista de que o nosso continente se deve orgulhar.

Falando especificamente do MIBEL, este foi criado com o objetivo de promover a concorrência, a igualdade, a transparência e a eficiência económica no setor elétrico. Simultaneamente, e de forma muito importante, visava funcionar como um agente agregador e facilitador para todos os participantes dos dois lados da fronteira, eliminando barreiras económicas e operacionais para aqueles que pretendessem atuar simultaneamente em Portugal e Espanha.

Tentando olhar de forma independente, parece-me claro que a grande maioria dos objetivos traçados aquando da constituição do MIBEL foram atingidos com sucesso.

Promoção da Concorrência

A criação de um mercado comum entre Portugal e Espanha facilitou a entrada de novos operadores e empresas de energia, aumentando a concorrência entre produtores e comercializadores. Por exemplo, em Portugal, o número de comercializadores ativos passou de apenas cinco nos primeiros anos do MIBEL para mais de 30 atualmente. Em Espanha, se nos primeiros anos havia cerca de 50 comercializadores, hoje o número aproxima-se das quatro centenas, o que representa um crescimento impressionante.

A concorrência também ajudou a aumentar a quota do mercado liberalizado. O consumo no mercado liberalizado em comparação com o regulado no mercado retalhista passou de uma percentagem insignificante no início do MIBEL para cerca de 94% atualmente, resultando muitas vezes em preços mais competitivos para os consumidores e em melhores opções comerciais no momento da contratação do fornecimento de energia.

Transparência nos Preços

O MIBEL promoveu a transparência dos preços da eletricidade, dado que as operações são realizadas em mercados organizados e com regras claras. Os consumidores podem acompanhar a formação dos preços em tempo real, permitindo decisões mais informadas sobre o consumo e os contratos de energia que assumem. Todos os índices de preços, tanto do mercado SPOT como do Mercado de Derivados do MIBEL, são publicados diariamente nos respetivos sites, em formato aberto e acessível a todos os stakeholders do setor.

Estabilidade e Previsibilidade

A existência de um mercado a prazo permite que os operadores e consumidores se protejam contra variações bruscas dos preços da eletricidade, garantindo maior estabilidade. Isso é importante, por exemplo, para grandes consumidores de energia, como indústrias, que podem prever e gerir os seus custos a longo prazo. Da mesma forma, é crucial para produtores de energia renovável, que podem assim prever o valor que torna viável o seu plano de negócios.

Integração e Eficiência

O MIBEL promoveu uma melhor integração entre os sistemas elétricos de Portugal e Espanha, otimizando o uso da capacidade de produção e das interligações. Isto impactou as diferenças de preços “spot” entre os dois países. No início do mercado SPOT para Portugal (2007), o “spread” médio mensal entre Portugal e Espanha chegou a ser superior a 15€/MWh, mas hoje esses valores são residuais, com mais de 90% das horas a registarem preços iguais de eletricidade nos dois países.

Segurança de Abastecimento

A evolução da capacidade de interligação entre os sistemas elétricos de Portugal e Espanha, potenciada pelo MIBEL, também teve impacto na segurança do abastecimento de eletricidade, permitindo que um país compense eventuais falhas ou défices no outro. Um exemplo de como a segurança de abastecimento é assegurada com mercados mais interligados ocorreu em 2021, quando Portugal deixou de utilizar a central a carvão do Pego. Apesar da instabilidade nos mercados de gás e da fraca produção hídrica que existia na altura, a situação foi mitigada com a importação de eletricidade de Espanha.

Mercados que definem preços de forma correta, como acontece tanto no OMIE como no OMIP, em regiões com um mix energético diversificado, são essenciais para que os agentes tenham a melhor perceção possível do preço da sua tecnologia, permitindo decisões mais eficientes que protegem a segurança do abastecimento no país ou na zona onde atuam.

Promoção de Energias Renováveis

A criação do MIBEL facilitou a integração de fontes de energia renováveis nos mercados ibéricos, promovendo a produção e venda de energia limpa. A integração entre Portugal e Espanha permite que as energias renováveis possam ser “escoadas” de um país para o outro a preços competitivos, viabilizando assim o seu investimento. A convergência dos preços diários entre os dois países permite que promotores de energias renováveis considerem diferentes soluções de investimento nos dois mercados. A operacionalização dos leilões de garantias de origem, ou os produtos a longo prazo (PPA’s a 10 anos) de perfil renovável, listados no OMIP, constituem também exemplos de como os mercados são decisivos na transição energética.

O Futuro do MIBEL

O MIBEL tem futuro? A resposta é simples: sim, tem. No entanto, como qualquer acordo internacional, terá de se adaptar às novas e desafiantes circunstâncias. Se o mundo está a mudar rapidamente, o setor da energia é certamente um dos que mais sentem essa aceleração.

Nos próximos anos, será necessário aprofundar a harmonização regulatória e fiscal entre Portugal e Espanha. As diferenças regulatórias e fiscais entre os dois países criam distorções de mercado, dificultando uma concorrência justa. Um exemplo é a gestão do mercado regulado retalhista, nomeadamente no acesso e definição de preços nos dois países. Um reforço do poder do conselho de reguladores do MIBEL (ERSE, CMVM, CMNV e CNMC) seria um passo importante para alcançar maior harmonização.

Portugal e Espanha devem continuar a “lutar” nas entidades europeias pelo aumento da interconexão entre a Península Ibérica e o resto da Europa. Uma interligação forte seria decisiva para beneficiar as condições excecionais de produção de energia renovável que ambos os países possuem. Além disso, funcionaria como um armazenamento indireto altamente eficaz.

O mercado a prazo ibérico ainda não recuperou os níveis de liquidez pré-crise energética, ao contrário do que aconteceu no resto da Europa. É necessário que os reguladores analisem este fenómeno e atuem de acordo com as soluções encontradas no início do MIBEL, nomeadamente através de leilões que agreguem liquidez.

O MIBEL tem também de se adaptar ao redesenho do mercado elétrico europeu aprovado no final do ano passado pela União Europeia. O principal objetivo desta reforma, passou por tornar os preços da eletricidade menos dependentes da volatilidade dos preços dos combustíveis fósseis, e pela aposta em instrumentos que permitam fazer a gestão de risco da volatilidade de curto prazo das commodities energéticas. Novos produtos e sistemas serão exigidos ao MIBEL para acomodar estas exigências europeias.

A capacidade do MIBEL de se adaptar a este “novo mundo” de inteligência artificial, transição digital e sustentabilidade ambiental será crucial para que, daqui a 20 anos, a ERSE possa organizar e celebrar mais conquistas de um mercado ibérico de eletricidade que nos ensina como Portugal e Espanha, ao unir esforços, conseguem potenciar as suas qualidades e recursos em favor dos seus cidadãos.

(Este espaço de opinião é pessoal, não vinculando nenhuma das entidades com as quais o autor tem vínculo profissional ou associativo)

  • Ricardo Nunes
  • Economista, Chief Strategy Officer do OMIP, membro do Observatório de Energia da Sedes

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