Na internet somos todos vítimas
A maior exploração de privacidade da história acontece milhares de vezes por dia e conta entre as vítimas todos os seres humanos com acesso à internet.
Cada vez que usamos a internet estamos submetidos a um abuso dos nossos dados e da nossa privacidade. Isto é vendido como uma prática comercial normal, mas não é mais do que a exploração abusiva dos nossos padrões de comportamento privados. Agora o Irish Council for Civil Liberties, ONG irlandesa especializada na defesa dos direitos civis, decidiu colocar em tribunal todo o sistema de publicidade digital. Aproveitando que a entidade que gere a publicidade (a IAB) ter uma sede em Hamburgo, foi aí lançado um processo por violação do regulamento de proteção de dados. Este processo explica exatamente como se passa todo o processo de abuso de privacidade, ajudando a entender como somos escrutinados e estratificados.
A principal prova apresentada no processo é o sistema taxonómico de classificação de indivíduos. Cada comportamento ou crença aparente que demonstremos online é depurado em códigos individuais que servem para traçar o nosso perfil. Assim, se por acaso demonstramos simpatia com uma certa religião, isso corresponde a um código; se temos uma criança com deficiência, outro código; se temos uma determinada preferência sexual, outro código; e assim por diante. Esse conjunto de 1.697 códigos constrói o perfil individual de cada um, que depois é aplicado para determinar aquilo a que acedemos online. Este perfil é instantaneamente partilhado de cada vez que cada um de nós entra numa página de internet, com milhares de empresas a participar num leilão que determina que quem mais paga ocupa o espaço dos anúncios nessas páginas.
Para ser claro, convém explicar que não se trata aqui apenas de um “excesso” de vigilância ou de um “abuso” de privacidade. Trata-se da utilização destes dados de forma discriminatória, aumentando a desigualdade e promovendo a prática de crimes. A taxonomia permite que uma seguradora de saúde cobre valores mais altos a um utilizador que tenha no seu histórico digital a pesquisa por doenças graves, a um empregador recusar candidatas que tenham procurado por informações sobre uma gravidez ou a uma entidade política enviar desinformação direcionada a quem lhe seja sensível. Os exemplos não têm fim. E não há forma de verificar isto. Simplesmente, a indústria publicitária digital é um facilitador de desigualdades e da prática de crimes repetidos diariamente.
O abuso destas táticas é constante. Mas tudo isto não é mais que o reflexo de uma prática instituída pelos gigantes digitais que, à conta da fama de inovadores, se limitaram a criar um enorme sistema de vigilância que serve apenas para… vender anúncios. Quando empresas de redes sociais associam estes perfis a utilizadores individuais, ficam em posição privilegiada para influenciar os comportamentos e estratificar as populações. É claro que empresas como a Google ou a Facebook estão numa posição privilegiada para construir esses perfis graças à leitura dos emails, à consulta das mensagens privadas e à exploração dos conteúdos que produzimos.
As eufemisticamente chamadas “políticas de privacidade” não enganam e dão às aplicações o direito a ler tudo e a tomar posse de tudo o que é enviado pela rede. Aliás, qualquer menção à palavra privacidade em conjunto com o nome de uma destas empresas é uma piada infeliz: estas empresas só existem porque exploram a privacidade alheia, violando a lei e enriquecendo pelo caminho. Neste caso, a famosa “economia da partilha” digital ganha todo um novo significado: os utilizadores individuais criam conteúdo para ser explorado pelas mega-plataformas, que ainda violam rotineiramente a privacidade desses mesmos cidadãos. Não temos acesso a estes dados nem forma de limitar a sua utilização, nem sequer de saber quem os tem. É verdadeiramente escandaloso.
O imperativo categórico de todo este processo é, naturalmente, a devolução da privacidade – e da dignidade – aos cidadãos. Mas há vantagens adicionais neste processo de reconstrução do ecossistema publicitário. Acabar com a exploração dos dados pessoais permitiria premiar automaticamente as páginas que produzem o conteúdo de melhor qualidade.
Sabendo-se que os consumidores mais procurados são os que têm maior poder de compra, e que esses tendem a ler conteúdo com maior qualidade, as páginas que apelam a esses públicos veriam imediatamente um aumento do interesse publicitário nos seus conteúdos. Isto iria, desde logo, melhorar a vantagem competitiva dos meios de comunicação social enquanto espaço de referência para anunciantes, dispensando apoios diretos do Estado – e deixando que seja a livre concorrência de mercado a estabelecer a competitividade necessária.
A outra vantagem seria a resolução do problema da cobrança de impostos destas entidades internacionais que selecionam as geografias mais convenientes em função da tributação mais favorável, explorando países como Portugal de milhões devidos em impostos graças a práticas comerciais não cobradas no território. Para que isto se resolva, é preciso que quem manda perceba o que se está a passar e que os cidadãos assim o exijam. É preciso literacia digital. Ora, o problema da literacia é que às vezes é decidida por quem não a tem… como é o caso. Processos como este podem ajudar a resolver o problema, e por isso se saúda
Ler mais: a recomendação de leitura é mesmo a consulta do processo submetido pela ICCL com a ajuda da Spirit Legal, pois este processo pode ser determinante na recuperação de soberania sobre a nossa privacidade.
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