O ADN de Portugal – Não se governa nem se deixa governar

Encurralado por dois partidos estatizantes, o novo Governo dificilmente será mais do que um executivo de gestão, forçado a negociar orçamentos através da concessão de benefícios.

A nossa democracia política está viva. Depois de anos consecutivos de progressiva ausência de muitos portugueses na hora de votar, o dia 10 de Março traduziu-se num regresso a dados mais aceitáveis de participação cívica na hora de decidir o futuro político de Portugal. Opções alternativas não faltaram (algumas bizarras, diga-se) e os portugueses exerceram as suas com civismo e normalidade. A campanha representou também o regresso das famílias (incluindo os mais novos) ao acompanhamento dos debates e à discussão política. Voltámos a ter uma noite eleitoral com suspense até ao último minuto. Na realidade, tivemos quase um esgotamento de política nos últimos meses.

Nada disto é prejudicial à democracia, que tem dificuldade em subsistir se as pessoas não se sentirem envolvidas nela, pelo menos no dia em que são chamadas a colocar a sua cruz no boletim de voto

Por mais espalhafato que o resultado do Chega gere, continuamos a ser um país com uma larga maioria de “moderados”. O Chega cresceu “violentamente” porque a demagogia e o populismo – com alguma organização e “arte” na comunicação na era das redes sociais – têm a facilidade de conquistar rapidamente uma ampla comunidade de fiéis que, por múltiplas razões (algumas compreensíveis), estão prontos a depositar a sua fé num talentoso pregador.

Mas convém não esquecer que, pelo menos por enquanto, temos mais de 4 milhões de eleitores que votam ao centro ou que votam em soluções ditas de esquerda ou direita, mais liberais/progressistas, incluindo a Iniciativa Liberal e o Livre. Esta ampla maioria merece respeito e não pode ser dada como derrotada. Portanto, não é suposto darmos um salto para uma espécie de nova “ditadura de minoria”, conceito que tanto chateia o tipo de movimentos que o Chega orgulhosamente integra.

As notícias razoáveis terminam por aqui.

Sem surpresa, Portugal parece estar a começar a alinhar-se com os ventos da Europa e da América. Ventos de demagogia e populismo, que vendem soluções milagrosas para questões complexas. Discursos de divisão entre “pessoas de bem” e “pessoas de mal”, que ressurgem porque a memória do que foram estes movimentos no passado está, infelizmente, a perder-se. Os populismos só estiveram adormecidos na Europa Ocidental enquanto sobreviveu a memória da devastação e tragédia que os seus antepassados causaram (Timothy Garton Ash descreve muito bem este fenómeno na sua obra “Pátrias”). Mas o tempo é inevitavelmente fatal para a memória e um novo ciclo se vai gerando até, na melhor das hipóteses, as pessoas voltarem a entender que as receitas dessa época tenebrosa não são solução para os seus problemas, problemas claramente menos graves do que aqueles vividos no rescaldo das grandes guerras da Europa ou mesmo no tempo do salazarismo e do PREC.

Num tempo em que a memória é facilmente consumida por um viciante deslizar de dedos no Tik Tok, até Trump pode voltar a ganhar as eleições nos EUA, apesar de envolvido em múltiplos problemas judiciais e depois de há apenas três anos termos assistido em direto a senhores com capacetes de pele e chifres a invadir o Capitólio, convictos da necessidade de fazer a revolução, hipnotizados por uma fraude eleitoral inventada para manipulação de fiéis.

É o que temos. É esse o estado de parte relevante das democracias ocidentais, ainda assim bastante mais agradável do que tantas ditaduras que continuam a impingir-se no mundo.

Estamos em tempo de prognósticos (sempre com o enorme risco de errar). O meu não é famoso: a não ser que haja um volte-face na atitude dos partidos que podem decidir a governação, o que se prevê para Portugal é mesmo um pântano, muito mais enlameado que o de Guterres. Um pântano de lama espessa que dificilmente possibilitará a um Governo da AD reformar o que quer que seja, muito menos no sentido que, a meu ver, é desejável para Portugal e que, em parte, constava no seu programa.

Encurralado por dois partidos estatizantes, o novo Governo dificilmente será mais do que um executivo de gestão, forçado a negociar orçamentos através da concessão de benefícios para a corporação A ou B, sempre com mais gastos para o Estado e, previsivelmente, sem qualquer reforma com benefício sustentado para a economia e o progresso do país. E irá gerir até que a tática partidária dite a convocação de novas eleições. Depois logo se verá que tendências estarão mais virais na nossa grande rede social.

Portanto, perdemos um fator que gerava inveja em muitos países: estabilidade. E, pelo menos por agora, ainda não percebemos em troca do quê. Mas não parece que tenhamos pela frente aquela instabilidade positiva de reformas para transformar um país para melhor.

Num país pequeno, com um mercado interno muito limitado, só uma certa estabilidade política que gere segurança jurídica, é capaz de cativar mais investimento externo (absolutamente essencial para nós). Repare-se que até a geringonça foi capaz desse feito e certamente não foi por ser pensada por paladinos da economia de mercado. Foi porque, pura e simplesmente, conseguiu transmitir uma perceção de estabilidade e paz social.

Façamos então figas para que os ventos do turismo continuem a soprar a nosso favor, com sol, segurança e temperaturas amenas ( mas com chuva no inverno) e que o Governo consiga cativar alguns apoios políticos para, pelo menos, não desestabilizar as poucas fortalezas que temos. São essas que nos poderão ajudar a manter à tona de água se, por exemplo, a situação geopolítica internacional continuar a agudizar-se.

Por fim, visto que escrevo numa revista do setor, creio que a Justiça merece uma breve nota (e não mais do que isso, pois, como sempre, não há interesse e clima político para democratizar/melhorar este setor e certamente que não será a discutir a prisão perpétua ou a castração química que resolveremos algum problema). Não vale a pena escamotearmos o óbvio: os populismos alimentam-se profundamente do justicialismo. É esse justicialismo propagandeado com tremenda falta de rigor que ajuda a criar medos, perceções exacerbadas de corrupção e fazer com que uma ampla comunidade de pessoas ache que a sua vida é um fracasso, simplesmente porque anda a ser roubada e enganada. Essa é sempre uma boa explicação simplista para justificar problemas mais complexos de cada indivíduo e da sociedade.

Com os dados que temos hoje, afigura-se evidente a fraqueza de algumas investigações mediáticas que incidem sobre políticos e outros alegados “poderosos”. Uma delas foi, objetivamente, decisiva para antecipar as eleições. Neste cenário em que batemos quase no fundo, aqui fica um wishful thinking: seria bom que os políticos e os responsáveis do próprio setor da Justiça (se é que os há) parassem para pensar se a Justiça não poderá ser alcançada com métodos que façam mais pelo equilíbrio de poderes na nossa democracia.

Será necessária tanta megalomania nas investigações? Será mesmo necessário deter e humilhar para investigar? Será que se deve fazer isso numa fase em que a sustentabilidade probatória é frágil e sem contraditório? E será que é mesmo inevitável a demissão de qualquer político que seja constituído arguido? Será que faz sentido termos espezinhado o princípio fundamental da presunção de inocência? Será que é aceitável que existam inquéritos criminais que demorem 10 anos ou mais? Será que é democraticamente admissível andarmos a escutar pessoas durante vários anos (que não representam qualquer perigo para a segurança do Estado ou da sociedade) em busca de um qualquer pecado? Devem os representantes sindicais do setor ser os porta-vozes defensores das investigações e seus métodos? Será que os poderes hierárquicos da PGR estão a ser devidamente interpretados?

Gostaria que, pelo menos, uma parte da comunidade de mais de 80% de eleitores que não votou no Chega, pensasse nestes temas. Desengane-se quem considera que se trata de questões puramente jurídicas. Como se tem constatado, são temas com relevantíssimo impacto político.

Será que não somos mesmo capazes de fazer melhor?

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

O ADN de Portugal – Não se governa nem se deixa governar

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião