O fundo de recuperação vai defraudar as expectativas

A União Europeia não está preparada nem requer um novo plano Marshall; precisa, sim, de corrigir as lacunas institucionais que a condicionam em momentos de crise como este.

Muito se tem especulado acerca do fundo de recuperação europeu, prometido pelo Eurogrupo há duas semanas. A Espanha fez saber esta semana que pretende um fundo dotado de 1,5 biliões de euros, na forma de dívida perpétua e transferências não-reembolsáveis para os países mais fragilizados pelo COVID19 (entre os quais, a própria Espanha). A França, semanas antes, já havia feito saber que pretendia a criação de um fundo a dez anos, uma espécie de património autónomo, separado dos demais instrumentos e mecanismos europeus, que seria financiado através de dívida garantida por todos. E até o Banco Central Europeu, à margem da discussão sobre o fundo de recuperação, vai defendendo a criação de um banco mau comum à zona euro. As expectativas são elevadas. Mas são demasiado elevadas.

Importa regressar ao comunicado original do Eurogrupo para moderar as expectativas. Nesse texto, destaca-se a natureza temporária, específica e proporcional (“temporary, targeted and commensurate”) de um eventual fundo, associando-o directamente aos custos extraordinários do COVID19.

Ademais, sublinha-se que o fundo de recuperação deverá ser financiado através do orçamento comunitário europeu, para acelerar a recuperação económica no contexto das prioridades europeias, numa demonstração de solidariedade comunitária em benefício dos países mais afectados.

Há, por fim, uma vaga referência a instrumentos inovadores de financiamento, assim os mesmos sejam consistentes com os tratados europeus. Ou seja, não se promete a revolução. Apenas a evolução na continuidade.

A expansão orçamental na Europa induzida pelo COVID19 vai acrescentar entre 10 e 20 pontos percentuais à dívida pública de cada país, em percentagem do PIB, dependendo da contracção económica que cada país evidenciar.

Os países mais afectados serão aqueles mais expostos a actividades cíclicas, como o turismo, e onde o peso das micro e pequenas empresas for maior na distribuição do emprego. Portugal está na linha da frente, juntamente com a Grécia, o Chipre, a Itália e a Espanha. Em todos estes países, cerca de 60% (ou mais) do emprego total é gerado por empresas com menos de 50 trabalhadores. Quanto ao turismo, o seu peso na empregabilidade é maior em Portugal, Grécia e Chipre – 20% do total ou mais – e menor em Itália e em Espanha (que têm mais indústria do que os outros).

A negociação de um fundo de recuperação numa altura em que a negociação do próprio quadro orçamental plurianual da União Europeia está num impasse não será fácil. Actualmente, o orçamento anual da União Europeia representa 1% do PIB europeu, ou seja, cerca de 170 mil milhões de euros.

Deste montante global, um terço do orçamento vai para a Política Agrícola Comum, outro terço vai para as políticas de coesão (incluo aqui políticas económicas, sociais e territoriais) e a restante parte vai para o resto – desde a inovação e competitividade, às políticas de imigração e controlo de fronteiras, ou ainda os apoios multilaterais ao resto do mundo. Numa altura tão delicada, será difícil, embora fosse muito desejável, sanar as contradições entre o discurso político da Comissão Europeia e a forma como são distribuídos os fundos do orçamento comunitário.

Contudo, o que salta mais à vista é a diferença colossal de valores, entre os montantes disponíveis no orçamento comunitário (170 mil milhões de euros) e os valores pretendidos no âmbito de algumas propostas em cima da mesa como aqueles que estão na proposta espanhola para o fundo de recuperação (1,5 biliões).

A Comissão Europeia tem tentado ultrapassar estas limitações através de empréstimos alavancados a partir do próprio orçamento comunitário e de garantias adicionais prestadas pelos Estados membros. Foi a forma encontrada para financiar o novo mecanismo SURE, que corresponde a uma linha de empréstimos aos Estados membros para acomodar parte dos programas de protecção de emprego e de subsídios de desemprego implementados em resposta ao coronavírus. Mas é de empréstimos, em cima de empréstimos alavancados, que falamos.

Quando estes mecanismos de emergência vencerem, os fundos terão de ser reembolsados pelos Estados membros e, provavelmente, terão também de ser refinanciados. Com a montanha de nova dívida entretanto criada, é provável que a diferenciação dos prémios de risco entre países regresse em força. As decisões do Eurogrupo criaram uma janela de oportunidade, talvez de dois ou três anos, para se chegar a uma solução de longo prazo. Será o tempo necessário para estabilizar a economia, restabelecer algum equilíbrio orçamental depois de eliminada a despesa pública extraordinária associada ao COVID19, e, sobretudo, o tempo necessário para alcançar algum consenso político.

A discussão sobre o fundo de recuperação ficará inquinada se começar com a mutualização da dívida ou com a criação de impostos ditos europeus para reforço do orçamento comunitário. Seria preferível que a discussão inicial se centrasse na possibilidade de transferir despesas específicas, agora financiadas pelos mecanismos de emergência, para a esfera directa da União Europeia. Seria o caso da rede de protecção social e o reforço da despesa em saúde. Tratar-se-ia de aprofundar a ideia de integração europeia e, no caso da saúde, poder-se-ia até pensar numa espécie de mercado comum hospitalar. Ao pensar-se primeiro nas vantagens da união, seria depois mais fácil pensar-se na forma de a pagar.

Há na discussão da mutualização da dívida um pano de fundo que não me agrada: a ideia de que o aumento da despesa pública relacionada com o COVID19 será permanente. Ora, isto não tem necessariamente de ser assim. As despesas sociais tenderão a normalizar à medida que a economia for recuperando, e o reforço do orçamento da saúde poderá ser realizado através do rearranjo do orçamento de cada país. É o caso de Portugal, onde a despesa pública em saúde, cerca de 12% da despesa pública total, está há muito tempo abaixo da média dos países da OCDE (onde a despesa pública em saúde é de 15% da despesa pública total) e bem abaixo dos valores evidenciados em países como a Alemanha e a Holanda (20%).

A ideia do fundo de recuperação foi metida a martelo no comunicado do Eurogrupo para acalmar os mercados. Mas, em face do texto original, são imprudentes as expectativas que se observam em alguns quadrantes políticos.

A União Europeia não está preparada nem requer um novo plano Marshall; precisa, sim, de corrigir as lacunas institucionais que a condicionam em momentos de crise como este. Entre estas lacunas, seria importante que, de uma vez por todas, fosse conferida iniciativa legislativa ao Parlamento Europeu, pois talvez assim se ultrapassassem as dificuldades evidenciadas no Conselho Europeu. O desafio está em aprofundar a integração europeia, reforçando a representatividade dos cidadãos de cada país nas decisões tomadas ao nível europeu. A União Europeia precisa dessa legitimidade.

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