O novo PEVE: primeiras dificuldades na aplicação do regime da Lei n.º 75/2020

  • Maria de Fátima Ribeiro
  • 4 Janeiro 2021

Devido à equívoca formulação legal e respectiva remissão, são possíveis várias interpretações quanto às maiorias de créditos que devem estar representados pelos credores

O PEVE (Processo Extraordinário de Viabilização de Empresas) é uma figura introduzida no ordenamento jurídico português pela Lei n.º 75/2020, de 27 de Novembro (e aí regulada nos artigos 6.º a 15.º): trata-se de um novo processo, com carácter extraordinário e transitório, vigorando, nos termos do artigo 18.º, n.º 1, da mesma lei somente até 31 de Dezembro de 2021 (embora esse prazo possa ser estendido por Decreto-Lei, como se prevê no artigo 18.º, n.º 2); e ainda com carácter urgentíssimo, dado que assume prioridade sobre a tramitação e julgamento de processos como o processo de insolvência e o PER, já de si processos urgentes (cfr. o artigo 6.º, n.º 1, da referida lei).

Tratando-se de um processo com estas características e especificamente destinado a potenciar a viabilização das empresas afectadas pela crise económica decorrente da pandemia da doença COVID -19, impunha-se que a sua regulação se pautasse pela certeza e segurança jurídicas, só assim se assegurando e justificando, sempre com respeito pela justiça, a celeridade que se anuncia na Lei n.º 75/2020 e que se revela essencial neste contexto. São, todavia, muitos os aspectos do seu regime legal que põem em causa a razão de ser do PEVE – e um deles respeita, desde logo, aos elementos que devem acompanhar o requerimento para iniciar o processo, a apresentar pela empresa no tribunal competente: o acordo de viabilização.

No artigo 7.º da Lei n.º 75/2020 determina-se que o processo se inicia com um requerimento da empresa, acompanhado por um acordo de viabilização assinado por si e por credores que representem, “pelo menos”, as maiorias previstas no artigo 17-F, n.º 5, do CIRE. Ora, a determinação desta percentagem mínima da participação dos credores no impulso do processo apresenta sérias dificuldades.

A remissão para o n.º 5 do artigo 17.º-F, quando se procede às necessárias adaptações, dá azo a algumas perplexidades – é que as normas em causa pressupõem a existência de uma votação, na qual podem participar todos os credores. Então, recordamos que se considera aprovado, no âmbito do PER, o plano de recuperação se: a) sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.ºs 3 e 4 do artigo 17.º-D, recolher o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções; ou, em alternativa, b) recolher o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, calculados de harmonia com o disposto na alínea anterior, e mais de metade destes votos correspondentes a créditos não subordinados, não se considerando como tal as abstenções. Sendo que no PEVE não existe votação, mas antes a assinatura do acordo de viabilização por credores que representem pelo menos as maiorias de votos previstas para a aprovação do plano de recuperação no âmbito de um PER, cabe sempre proceder, desde logo, a esta adaptação.

Passemos desde já à análise da segunda possibilidade: o plano considerar-se-á aprovado se recolher o voto favorável de credores cujos créditos representem mais de metade da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto e mais de metade destes votos correspondentes a créditos não subordinados. Ou seja: nos termos da remissão para a alínea b), exige-se que o acordo seja subscrito por credores que representem mais de 50% dos créditos relacionados com direito de voto, sendo que mais de metade desses créditos devem ser não subordinados. Assim, será necessário pelo menos o acordo de credores titulares de mais de 25% de créditos relacionados não subordinados com direito de voto, se apenas credores relacionados titulares de metade mais uns votos subscreverem o acordo. A aplicação das regras relativas a estas maiorias estabelecidas na alínea b) não coloca dúvidas (ao contrário do que acontece quanto à remissão para a alínea a) do n.º 5 do artigo 17.º-F), razão pela qual até se defende entre nós a possibilidade de apenas esta remissão dever ser considerada no âmbito do PEVE, como se verá.

É, então, na remissão para a alínea a) que surgem os problemas. Exige-se ali que o plano seja votado por credores que representem pelo menos um terço dos créditos relacionados com direito de voto, embora não seja necessário que pelo menos esse um terço vote no sentido da aprovação do plano – a lei basta-se, para esse efeito, com o voto favorável de credores que representem pelo menos dois terços dos votos emitidos, ou seja, no mínimo, dois terços daquele um terço de créditos relacionados com direito de voto. Isto posto, o plano é aprovado ainda que apenas votem favoravelmente credores que representem mais de dois nonos (ou seja, mais de 22,22%) dos créditos relacionados com direito de voto. Acresce ao exposto que mais de metade destes votos deve corresponder a créditos não subordinados. Por outras palavras, no mínimo mais de metade destes mais de dois nonos deve corresponder a créditos não subordinados.

Então, por força da estrita remissão para o regime do PER, os credores que no âmbito do PEVE deveriam assinar o acordo de viabilização seriam aqueles que representassem mais do que os dois nonos (mais do que 22,22%) dos créditos relacionados com direito de voto – sendo que mais de metade destes (por exemplo, se os credores subscritores representam 25% dos créditos relacionados, mais de 12,5%) deveriam corresponder a créditos não subordinados. Simplesmente, já foi defendido na doutrina que se deve entender que os credores subscritores do plano deverão, no PEVE, representar no mínimo um terço dos créditos contidos na relação com direito de voto. E também se tem defendido que a alínea a) do n.º 5 do artigo 17.º-F é inaplicável a este processo, dado pressupor necessariamente uma votação, pelo que a remissão apenas operaria para a alínea b), bastante mais exigente, como se viu.

Pois bem: existem argumentos que militam a favor de uma e de outras interpretações. Por um lado, uma vez que os efeitos da homologação do acordo de viabilização se estendem a todos os credores relacionados, percebe-se que se sinta a necessidade de acautelar a existência de eventuais recursos abusivos a este mecanismo de viabilização, que afinal se poderia iniciar e fazer prosseguir apenas com a vontade de credores que representem pouco mais de 10% de créditos não subordinados (para além da vontade do devedor e dos credores que representam créditos subordinados).

Mas a favor da solução pela qual se exige apenas a subscrição por mais de dois terços de um terço do total dos créditos temos a letra da lei e até a sua ratio: este é um mecanismo assumidamente extraordinário, estritamente aplicado num contexto verdadeiramente excepcional – e ao qual só podem recorrer empresas que, seguramente, apresentavam um activo superior ao passivo antes de sentirem os efeitos das medidas tomadas para travar a evolução da pandemia. Pelo que se justifica que seja ágil, no sentido de não exigir às empresas infindáveis rondas de negociações, realizadas sem qualquer protecção, nomeadamente, relativamente à prestação de serviços considerados essenciais, a processos de insolvência iniciados pelos credores e a acções judiciais para cobrança de dívidas (uma vez que estes efeitos “protectores” se produzirão apenas em momento ulterior ao da apresentação do requerimento). Depois, não é seguro que tenha sido intenção do legislador ser mais exigente com as maiorias necessárias para recorrer ao PEVE do que com aquelas que são necessárias para fazer aprovar um plano de recuperação no âmbito de um PER. Mais: se é certo que na subscrição do acordo de viabilização não existe necessariamente a intervenção de todos credores afectados, não o é menos que todos têm ao seu alcance a possibilidade de vir ao processo solicitar a não homologação do acordo de viabilização; e que o juiz está vinculado, nessa decisão de homologação ou não homologação, ao disposto nos artigos 215.º e 216.º do CIRE – devendo, nomeadamente, recusar oficiosamente a homologação de plano cujo conteúdo não respeite o princípio da igualdade dos credores da insolvência, nos termos em que vem formulado pelo artigo 194.º do CIRE.

Pois bem, os problemas colocados pela remissão para o disposto no n.º 5 do artigo 17.º-F no âmbito de um processo com as características do PEVE não acabam aqui. É que, neste processo, a alternativa deixa de fazer sentido, pois seja qual for a interpretação que se defenda para a aplicação do disposto na alínea a) (desde que se considere que ela é aplicável, bem entendido), deixa de fazer sentido a remissão para o disposto na alínea b), por as maiorias nela exigidas serem mais exigentes do que as resultam da aplicação da alínea a). Por outras palavras, não faz sentido afirmar que o devedor pode apresentar o acordo assinado por credores que representem mais do que uma determinada percentagem de créditos ou, em alternativa, apresentá-lo assinado por credores que representem uma maioria superior a essa, pois esta segunda possibilidade já se encontra necessariamente contida na primeira.

Em síntese: devido à equívoca formulação legal e respectiva remissão, são possíveis várias interpretações quanto às maiorias de créditos que devem estar representados pelos credores que assinam o acordo de viabilização a apresentar pela empresa, o que gerará grande incerteza e insegurança jurídica numa área que reclama, dadas as circunstâncias, especial atenção. Está em causa o próprio recurso ao novo processo de viabilização, que tem carácter urgentíssimo – e as empresas precisariam de conhecer inequivocamente os elementos que devem acompanhar o requerimento a apresentar no tribunal competente, até porque no artigo 9.º, n.º 15, da mesma lei se determina que o “termo” do processo extraordinário de viabilização (sem que se esclareça exactamente acerca do alcance desta previsão da norma, nomeadamente, se ela abrange as situações de não homologação do acordo por não estarem respeitadas as maiorias necessárias) impede a empresa de recorrer novamente ao mesmo. Urge uma intervenção legislativa que clarifique (pelo menos) este aspecto de regime.

  • Maria de Fátima Ribeiro
  • Docente da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e coordenadora da Pós-Graduação em Sociedades Comerciais.

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