O raro caso da Zona Franca da Madeira

  • Nuno de Oliveira Garcia
  • 17 Julho 2024

Imagine-se, por fim, a existência de penhoras-surpresa de saldos bancários sem notificar quem seja, a derradeira ilegalidade para que a dita condenação seja finalmente cumprida.

O título deste texto é inspirado na obra intersecionista de Mário de Sá-Carneiro “A estranha morte do Prof. Antena” (1913/1914). Nesta novela, frequentemente classificada como precursora em Portugal do estilo da ficção científica e do fantástico, o narrador confronta-se, teorizando, com uma sucessão de explicações mais ou mesmo absurdas, a propósito de um acontecimento trágico com contornos surrealistas.

Comecemos este texto por imaginar que um Estado-Membro cria, com aprovação e autorização da União Europeia, um regime fiscalmente atrativo para uma sua região ultraperiférica (classificado tecnicamente como um auxílio de estado de funcionamento regional) com o fundamento de que as empresas para exercer a sua atividade nessa região têm custos adicionais derivados a essa mesma ultraperiferia. E imagine-se que existem outros casos deste tipo de benefício (concorde-se, ou não, com a sua existência ab initio), e que todos eles foram divulgados (e até publicitados) pelos respetivos Estados que, assim, concorrem entre si na atração de empresas para estas regiões ultraperiféricas. E vamos imaginar também que, anos volvidos, a Comissão Europeia viria a decidir que um desses regimes, precisamente aquele do Estado-Membro a que começamos por referir, teria sido erradamente fiscalizado pelo próprio Estado e que os auxílios teriam de ser recuperados. Até aqui teríamos uma situação longe de ser inaudita, nem totalmente invulgar no sentido em que, de forma pragmática, o que se verificaria era um efetivo controlo comunitário de um Auxílio de Estado, nada mais. Ou seja, um Estado-Membro entenderia que o Auxílio por si criado era legal e, ao ter autorização para o fazer, aplicá-lo-ia; enquanto a Comissão viria a entender o contrário. Por outras palavras, cada parte estava a fazer a sua parte.

Mas no nosso caso imaginário a intriga adensa-se, uma vez que a Comissão viria a condenar o Estado com o fundamento de que este deveria ter aplicado regras que não se encontravam previstas para o seu tipo de Auxílio, regras que deveriam assim ter sido, digamos, intuídas pelo Estado… algo já bastante menos vulgar. Continuando o nosso enredo, vamos supor que tal decisão de condenação encontrar-se-ia consolidada – não sei que o Estado tenha tentado (com que engenho, isso é tema diferente) reagir –, pelo que valeria pouco discorrer se a mesma é tecnicamente correta, da mesma forma que seria pouco produtivo imaginar se a mesma teria sido proferida naqueles termos se tivesse sido outro o Estado-Membro envolvido. Nesta fase da história, vamos imaginar até que o sentido da decisão seria, simplificando, o de que tal regime não controlaria devidamente a relação entre benefícios atribuídos e a existência de rendimentos relacionados com uma atividade efetiva e materialmente realizada nessa região ultraperiférica. E não é difícil de imaginar também que tal decisão não procederia à efetiva revogação do regime de auxílio, pois assim não costuma acontecer, requerendo sim que o mesmo fosse cumprido conforme a sua interpretação, o que obrigaria a uma análise fina e casual da situação de cada empresa.

E vamos imaginar então que esse Estado começaria a ser coagido para tal recuperação. Vamos até imaginar, nesta história imaginária, que correm vários rumores sobre o elevado grau dessa coação. E que, como nem tudo corre bem na Administração da região desse Estado, a Comissão Europeia, e agora já o próprio Estado, começam a pressionar cada vez as autoridades da região ultraperiférica. Com efeito, o Estado, cada vez mais constrangido, começaria, hipoteticamente, a agir e, ao invés de utilizar para a recuperação de auxílios as agências de atribuição de subsídios europeus ou até as CCDR, entenderia recorrer à sua Administração fiscal para proceder à cobrança dos valores dos benefícios que as empresas nessa região tinham auferido.

E é aqui que a nossa fábula começa a ganhar contornos mais sinistros, na falta de melhor adjetivo. Será que ainda conseguimos imaginar uma situação em que uma empresa, que beneficiou durante anos de um regime legal em matéria fiscal, pode ser equiparada a uma empresa devedora de imposto por a Comissão Europeia ter, anos depois, entendido que tal benefício constituía um Auxílio de Estado ilegal? Conseguimos imaginar a utilização de uma máquina de cobrança de dívidas fiscais – rápida e mecanicamente coerciva – para algo que não tem essa natureza? Conseguimos até imaginar que essa máquina foi proibida de conceder as mais básicas garantias de defesa consagradas na Lei e, assim, conseguir arrecadar as quantias independentemente das consequências para as empresas? É que, continuando a conjeturar, sempre se diria que uma coisa é uma empresa ter de conhecer a Lei Fiscal e não a cumprir, incorrendo numa evidente infração. Coisa diferente é uma empresa cumprir a Lei Fiscal em vigor, divulgada pelo Estado e pela região, robustecer a sua decisão com pedidos de informação vinculativa válidos no ordenamento jurídico e, mesmo assim, vir anos depois a Administração entender deixar de estar vinculada a essas informações e agir sem competência para realizar tal recuperação… E imaginar o inimaginável: que nessa recuperação, a Administração desse Estado iniciaria ações de inspeção de natureza tributária nas quais nada se inspeciona, e que depois solicitaria a audição das empresas sem, contudo, levar em consideração o que por estas é alegado, mesmo quando é invocada e demonstrada a mais evidente caducidade novamente nos termos da Lei. E mais, imagine-se que essas empresas não teriam os direitos que a própria Lei consagra para as demais empresas e contribuintes na região e no Estado, seja o de solicitar a entrega de uma garantia bancária ou até de a dispensar, e o de solicitar o pagamento em prestações. E imagine-se até que essa mesma Administração começaria, de forma indiscriminada, a remeter e-mails aos contabilistas da região exigindo elementos incriminatórios das empresas (procurações, atas, indicação de créditos suscetíveis de serem penhorados) e que corre, num sussurro aterrador, o boato que se pretende responsabilizar gerentes, e até meros representantes, pelos valores em dívida! Imagine-se, por fim, a existência de penhoras-surpresa de saldos bancários sem notificar quem seja, a derradeira ilegalidade para que a dita condenação seja finalmente cumprida.

  • Nuno de Oliveira Garcia
  • Sócio da Gómez-Acebo & Pombo

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