O Regulamento IA e Difusão Normativa. Crónica de uma (In)Compatibilidade?

  • Ricardo Henriques
  • 28 Março 2024

Nos próximos dois anos entrará em vigor um regime denso, complexo e pesado, aplicável às empresas que queiram utilizar sistemas de IA na sua atividade comercial na UE.

O projeto de regulamentação da Inteligência Artificial (IA) na União Europeia (UE) iniciou-se com a encomenda de um Relatório acerca das considerações éticas orientadoras para o seu desenvolvimento, que veio a ser publicado em 2019 com 41 laudos. Em 2021, a Proposta para um Regulamento foi apresentada pela Comissão Europeia, contando já com 108. No final de 2023, o Parlamento e o Conselho chegaram a acordo quanto ao texto do diploma, preenchendo agora mais de 250 laudos, em razão da evolução da indústria e dos desafios atuais. Tal incremento no volume do diploma é causa de reflexão: com o ampliar exponencial do conteúdo regulatório material a cada passo do procedimento, ilustração da tensão entre a inovação e o formalismo legal da UE, continuará o Regulamento promotor dos objetivos europeus?

Ao regular a IA, são dois os principais objetivos da UE: prevenir danos e lesões aos direitos dos cidadãos; assegurar a primazia do mercado europeu em face de outras economias. O segundo prende-se com pretensões de globalização regulatória unilateral através de difusão normativa; de facto, em razão da globalização dos fluxos comerciais, os grandes centros de influência política e económica estão em permanente competição para cimentar os seus próprios critérios e limites como aqueles que, por defeito e por feitio, regulam a Indústria no mundo inteiro. Cria-se, pois, competição entre esferas de influência na regulamentação e exportação legislativa: convencionalmente, Bruxelas, Washington e Pequim, com os respetivos Brussels, Washington e Beijing Effects.

Para efeitos de comparação, a abordagem norte-americana à regulamentação da IA tem sido, como é característico, sectorial e estatal. Na China, a abordagem tem passado por fomentar e promover o desenvolvimento de IA sob alçada e orientação do Estado. Já na UE, o que se iniciou como um empreendimento de regulamentação horizontal, genérica, e garantista, converteu-se, em 6 longos anos de negociações e discordâncias internas, de audiências em parcerias estratégicas com os atores mais relevantes do mercado, de desenvolvimentos na Indústria, num autêntico menir legislativo – um conglomerado maciço de provérbios legais inelásticos, decalcados, para mais, da realidade comercial e não dos princípios legais subjacentes à União. Nem indução de valores, nem dedução de normas; o Regulamento foca-se, ao invés, na imposição de obrigações (e, consequentemente, a aferição de responsabilidade) com base em comandos declarativos de conteúdo não-jurídico, como a “implementação de medidas técnicas e organizativas adequadas” ou a “manutenção de documentação detalhada do funcionamento do sistema em suporte duradouro.”

Será este menir impulsionador da UE enquanto regulador global? Convirá, porventura, recordar que a exportação legislativa não é certa, nem depende apenas do poder de mercado; depende, também, da robustez da legislação, da sua qualidade técnica, das características do objeto, da unicidade dos requisitos e pressupostos impostos, e da facilidade geral de transposição dos complexos normativos para outras jurisdições, em face das alternativas regulatórias. É, pois, certo que, nos próximos dois anos, entrará em vigor um regime denso, complexo e pesado, aplicável às empresas que queiram utilizar sistemas de IA na sua atividade comercial na UE; é menos certo que esse regime venha granjear-lhe, na corrida à IA, o lugar pioneiro que deseja.

  • Ricardo Henriques
  • Sócio e co-coordenador da área de Propriedade Intelectual e Tecnologias de Informação da Abreu Advogados

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