O risco já não é o que era. Mutações da percepção de risco dos investimentos
De uma forma global, nos últimos 25 anos a definição de risco nos investimentos mobiliários tem vindo a sofrer mutações, tanto na perspectiva, como na percepção.
Há mais de 25 anos que me dedico à gestão de activos (wealth management e private banking) de clientes de elevado património, tendo tido a oportunidade de exercer esta actividade em quatro países, com quatro culturas muito diferentes. A conclusão óbvia – uma verdade de La Palice – é que o binómio risco/retorno é incontornável. Contudo, noto que, de uma forma global, nos últimos 25 anos a definição de risco nos investimentos mobiliários tem vindo a sofrer mutações, tanto na perspectiva, como na percepção. Senão vejamos.
O caso do “depósito a prazo”
Até aos eventos e consequências devastadoras da crise financeira de 2008, num contexto de taxas de juro altas, um depósito a prazo num banco comercial era considerado um investimento sem risco do mercado (sendo que, ao tempo, poucos investidores em Portugal olhavam para divida pública). Hoje já não é bem assim.
A percepção desse risco por parte dos investidores tem vindo a mudar, porque um depósito a prazo (mesmo com as garantias do estado) não deixa de ser um activo de risco considerável. Com efeito, no dia em que o depositante constitui um depósito a prazo, o dinheiro entra no balanço do banco e por um prazo determinado torna-se um activo do banco, o qual o usa para emprestar a terceiros (ou como bem entender).
Se o banco enfrentar dificuldades de solvência ou mesmo de liquidez, como aconteceu amiúde desde então, pode ser difícil o depositante reaver o “seu” dinheiro na data acordada e chegar a sofrer perdas. Se o dito banco falir, aí o depositante pode mesmo perder todo o valor, tanto mais que é um dos últimos (ou menos graduados) credores do banco. Será que nos dias de hoje as taxas de juro dos depósitos a prazo compensam o risco inerente? Sendo que a maior parte dos bancos depositários tem dívida de médio/longo prazo, através de obrigações, com yield bem mais atractivo e risco similar.
“Mobiliário” ou “imobiliário”, eis a questão
Nos últimos 20 anos temos assistido à descida e à manutenção em níveis historicamente baixos das taxas de juro da maior parte das moedas mundiais, incluindo EUR e USD. Na Europa já há alguns anos que o BCE pratica taxas de juro negativas e recentemente os EUA chegaram a uma impensável taxa de juro de zero. Este fenómeno suscitou, inevitavelmente, a procura de alternativas de investimento por parte dos investidores.
Enquanto nos EUA a maioria olha para o mercado de capitais como o principal veículo de investimentos e de aplicação das suas poupanças, na Europa (e mais marcadamente em Portugal) tende a ser o investimento imobiliário o mais procurado, razão pela qual registou um crescimento exponencial nos últimos anos, em contraste com uma dinâmica mais contida do mercado de capitais. (Permitam-me um “à parte”: com o aparecimento e consolidação de inúmeras empresas tecnológicas de qualidade na região, não entendo porque é que a Europa ainda não criou um índice tecnológico idêntico ao Nasdaq.)
Penso convictamente que a componente de imobiliário deve fazer parte de uma carteira de investimento, no entanto tem que ser considerada uma classe de activos não líquida. Se o investidor necessitar de liquidez imediata, uma ação ou uma obrigação de um bom emitente, mesmo com o mercado volátil ou em queda, em geral têm liquidez imediata; já um activo imobiliário, se o mercado estiver em queda, pode não ter liquidez e esse um risco subestimado, com custos associados que podem ser muito relevantes.
O refúgio ainda é uma “obrigação”?
Quanto às obrigações de taxa fixa, a dívida de empresas e de países, as quais têm representado a maior percentagem de investimento das carteiras conservadoras (e até mesmo das moderadas), vão ter de estar sujeitas a um escrutínio cada vez mais selectivo.
Obviamente que a combinação de taxas de juro historicamente baixas, excesso de liquidez injectada pelos bancos centrais e spreads de risco mais baixos de sempre favorecem o endividamento fácil e barato por parte das empresas e dos estados – e a verdade é que as ofertas de dívida, independentemente do risco, têm tido consistentemente uma procura superior à oferta.
Por outro lado, uma conjuntura mais negativa, o sobreendividamento das empresas e dos países, a possível mudança de política dos bancos centrais relativamente à compra massiva desta classe activos e a volatilidade da taxa de juro ao longo do tempo poderão traduzir-se num enorme problema para os emitentes e, consequentemente, para os investidores. Retomo o incontornável binómio risco/retorno acima referido: de uma forma geral e independentemente do nível de risco apresentado por cada emitente (seja empresa ou país),
o rendimento oferecido por esta classe de activos é baixo face ao risco que encerra. Há, em geral, um desfasamento da relação risco/retorno que esta classe de activos proporciona e não será exagerado antecipar que, aos níveis actuais, a possibilidade de perder é maior que a possibilidade de ganhar. Inevitavelmente, com estes factores, as carteiras geridas (independentemente do perfil associado) tenderão, cada vez mais, a incluir na sua coluna vertebral um activo que até hoje era pouco considerado: a liquidez.
É preciso mais “ação”
Retomo a constatação dos níveis historicamente – diria, ridiculamente – baixos das taxas de juro actuais para justificar a mudança da percepção de risco relativamente ao investimento em ações.
Ao contrário do caso do depósito a prazo, nos anos 90 e nos primeiros de 2000, o investimento em ações era visto como a classe de activos com mais risco inerente, sendo em Portugal (muito fruto de euforias frustradas com bolhas do passado) considerada um verdadeiro “bicho papão” para o investidor.
Sendo inquestionável que se trata de uma classe de activos de alto risco e que deve ser encarada e avaliada numa perspectiva de longo prazo, a verdade é que, não obstante todas as crises que vivemos nos últimos 25 anos e a volatilidade que as mesmas causaram, no tempo, as ações foram a classe de activos que mais se valorizou, sobretudo nos Estados Unidos, mas também na Europa. Há inúmeras empresas muito sólidas e a criar muito valor para o futuro.
É certo que é voz corrente o argumento (e a constatação) de que, principalmente nos EUA, o valor bolsista da maior parte das empresas está excessivamente alto e as acções estão caras. Mas será adequado e correcto analisar as empresas e a sua performance futura com as ferramentas e métricas das décadas passadas? E poderemos analisar todas as empresas e o seu potencial de criação de valor da mesma forma, independentemente da indústria e dos mercados em que se inserem? Uma coisa é certa: hoje, mais do há 25 anos atrás, um investidor, mesmo classificado de conservador, aceita mais – e bem – incluir esta classe de activos na sua carteira de investimentos.
Sem dúvida que ao longo do tempo temos assistido a uma mudança da percepção do risco por parte dos investidores. Activos antes considerados conservadores e sólidos deixaram de o ser; activos encarados com expectativa de rendimento garantido hoje levantam dúvidas sobre se assim continuarão; activos que pela sua natureza são de alto risco começam, cada vez mais, a ser aceites como forma de obter mais rentabilidade nas carteiras de investimentos. Certamente que os próximos anos serão interessantes a este respeito…, mas é importante que o investidor tenha consciência que, tal como em tudo na vida, o risco estará sempre presente em qualquer activo em que escolha investir. A diversificação de investimentos e o justo equilíbrio entre activos mobiliários e imobiliários será o segredo para maximizar os rendimentos e mais-valias ao longo do tempo. É para isso serve o aconselhamento profissional.
PS: Se outro não alcancei, pelo menos, não falhei o objectivo de escrever mais de meia-dúzia de linhas sem falar da pandemia! De facto, nos dias que correm esta parece ser o único tema de conversa, mas estou certo de que a vida vai continuar e que o sol voltará a brilhar, pelo que temos de nos preparar, continuando a fazer planos para o futuro e, em matéria patrimonial, a delinear uma estratégia de investimentos para o médio/longo prazo. Até o Marquês de La Palice concorda!
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