O violino de Centeno e o sarilho de Rio
Até aqui, o PSD podia empunhar a bandeira da responsabilidade orçamental, por oposição às tentações orçamentais de “bar aberto” do passado. Com o PS a chegar a um défice nulo, perde essa narrativa.
Tentar fechar a legislatura com um défice orçamental de 0,2% é uma óptima notícia e um objectivo que o Governo tudo deve fazer por alcançar ou superar. Mais duas ou três décimas de esforço no próximo ano e o país veria a sua credibilidade muito reforçada com uma mensagem muito simples e fácil de comunicar: acabámos com o défice, temos excedente orçamental. À notícia do ECO, sucederam-se, claro, várias vozes incomodadas e críticas deste caminho orçamental.
Convém recordar, ainda assim, que o primeiro Programa de Estabilidade e Crescimento apresentado por este governo em 2016 previa um défice de 0,1% para 2019 e com uma trajectória de crescimento do PIB abaixo da que está a verificar-se. Por isso, em relação a essa previsão nem se pode dizer que Mário Centeno esteja a ser “mais papista que o Papa”.
A esquerda mais à esquerda, que começa mais ou menos a meio do PS, reclama contra esta pressa em acabar com o défice e, invariavelmente, diz que “estes resultados são alcançados à custa do povo e dos seus direitos” (cito de cor, mas estou certo que estas palavras já foram ditas). Percebe-se a lógica, mas é preciso dizer-lhes e alertar os contribuintes que esta lógica só funciona no curtíssimo prazo e não no médio e longo prazo.
E que lógica é essa? É assim: se o défice não for cortado em mais mil milhões de euros – é isso que está em causa na passagem do défice actual para os 0,2% em 2019 – esse dinheiro pode ser utilizado em políticas sociais ou aumentos salariais da função pública, por exemplo. Certo. Mas, já agora, vamos contar o resto da história. Se isso acontecer, esses mil milhões de dinheiro que o Estado gasta sem o ter – todo o défice é dinheiro que é gasto sem que o Estado o tenha – terão que vir de algum lado. Virão de onde? De mais dívida que é feita e que fica para pagar nos próximos anos. E quem pagará essa dívida? Nós, se formos ainda novinhos, os nossos filhos e os nossos netos com os impostos que terão de pagar para isso.
Esta ideia de que o défice orçamental é um “almoço grátis” é um logro em que não podemos cair novamente. Pode ser um almoço grátis para quem o está a comer agora mas que será pago por quem vier a seguir em forma de dívida. Portanto, quando se diz “vamos ser mais lentos na redução do défice”, está-se a dizer “vamos nós gastar mais e fazer mais dívidas e quem vier a seguir que as pague”.
Mesmo que uma fatia da redução do défice esteja a ser feita com o aumento da carga fiscal, como de facto está, estamos apenas a trocar impostos pagos no futuro por impostos pagos agora. Este é o princípio geral do trio défice —> dívida —> impostos e só isto já bastava para pensar duas vezes antes de reclamar contra o corte do défice.
Mas há mais, que é a questão da oportunidade e do momento económico. Se todos se dizem a favor da disciplina e do equilíbrio orçamental – embora muitos acrescentem logo um “mas…” – quando é esperam, afinal, alcançá-lo se não for na fase alta do ciclo económico? Este ano a economia deverá desacelerar em relação a 2017 e, com as previsões disponíveis, não se prevê uma aceleração significativa para 2019. Nas incertezas que sempre há em cima da mesa, temos a evolução da política do Banco Central Europeu e o seu impacto nos juros.
Para um país com dívida pública de 120%, esta é uma variável fundamental, como se tem visto ultimamente com a “folga” dada pela descida dos encargos com juros. Se não aproveitamos esta “janela” de conjuntura simpática e positiva para cortar o défice e fazê-lo desaparecer, vamos fazê-lo quando? Quando a economia estagnar, o desemprego subir, a cobrança de impostos vacilar e a margem orçamental se reduzir naturalmente? Nessa altura, em que é preciso deixar o défice subir por funcionamento dos chamados “estabilizadores automáticos”, queremos partir dos zero ou de 1% ou 2%, arriscando ultrapassar novamente os 3%?
Esta é então a oportunidade para anular o défice e ela não pode ser perdida. E é também o momento para o ministro das Finanças se exceder naquilo que tem sido a sua gestão orçamental. A abordagem de Mário Centeno é semelhante à de um violinista: segura o instrumento com a esquerda, mas toca com a direita. No discurso e no papel garante o apoio parlamentar das esquerdas mas na prática e na acção lá segue as regras que a boa execução orçamental recomendam, coisa que está mais identificada com as políticas de direita – dediquei-me a isso, aliás, no último artigo.
O país só tem a ganhar com os bons resultados orçamentais, como se está a ver. Que o défice tendencialmente nulo seja alcançado por um governo de socialistas com o apoio de comunistas e bloquistas é politicamente irónico – uma ironia que não deixa também de ser retrógrada – e representa, sobretudo, um grande problema para os partidos mais à direita, sobretudo para o PSD.
É fácil de perceber porquê. A vida política portuguesa foi dominada, na última década, pela economia e, dentro desta, sobretudo pela questão orçamental. Todos sabemos porquê e como, não vale a pena repeti-lo. E ainda hoje, como se vê, as grandes discussões, os alinhamentos noticiosos e a agenda pública estão muito focados na gestão orçamental e nos recursos do Estado. É assim com a Cultura, com os incêndios, com a Saúde ou a Educação. É típico de “casa onde não há pão”.
Até aqui, o PSD podia sempre empunhar a bandeira da responsabilidade orçamental, das medidas duras mas necessárias para ter as contas minimamente em ordem e de uma alternativa ao regresso a tentações orçamentais de “bar aberto”, como aconteceu no passado.
Os últimos dez anos e os factos que todos conhecem sustentavam bem essa narrativa simples: os socialistas foram os delinquentes financeiros que levaram o país ao limiar da bancarrota e tiveram que pedir o resgate, enquanto os partidos da direita, bem ou mal, executaram esse programa dentro dos prazos e com resultados que agora permitem mais crescimento e contas mais equilibradas.
Os bons resultados orçamentais que este governo está orgulhosamente a alcançar retiram ao PSD essa possibilidade de diferenciação de fácil e rápida percepção pelos eleitores. É uma dificuldade para Rui Rio, mas pode ser uma óptima oportunidade para o país.
O desafio para o líder do PSD está em encontrar propostas e caminhos que sejam alternativas e, ao mesmo tempo, percebidas claramente pelo eleitorado. Já não chega dizer que “eles são irresponsáveis e nós não” e é preciso aprofundar o trabalho de casa. Não será uma diferença entre um défice nulo ou um pequeno excedente orçamental a sustentar um programa político.
A oportunidade para o país está em deixar de ter as discussões sobre o nível de défice público como centrais na vida política e financeira. Se se mantiver este consenso ao qual o PS veio agora juntar-se, de que a normalidade na gestão de um país é ter défice nulo ou pequenos excedentes – vá lá, défice nulo com uma margem de 0,2 pontos percentuais do PIB para cada lado – na fase mais alta do ciclo económico, passamos colectivamente a focar-nos no essencial das políticas públicas e não na última linha da tabela orçamental.
É saudável que o que separa orçamentalmente a esquerda e a direita não seja o maior ou menor défice que fazem e defendem, mas sim o “mix” de políticas e de receitas e despesas que propõem para chegar a um mesmo equilíbrio das contas públicas.
Mais despesa e mais impostos para a pagar? Para gastar ou investir em quê? E tributando quem? O Estado deve manter ou reduzir as suas funções? A redução da carga fiscal deve ser feita à custa de quê? Que investimentos públicos são prioritários? Como se restabelecem os meios para serviços de saúde? Descentralizar o quê e como?
No fundo, trata-se de deixar a discussão sobre o dinheiro que o Estado não tem – o défice – para a centrar nos recursos que o Estado tem.
Como se vê pelas execuções orçamentais dos últimos anos, não faltam possibilidades de propostas alternativas dentro do mesmo défice orçamental, a começar pelo debate sobre a sua sustentabilidade a prazo. São essas discussões, enformadas pelas diferentes formas de olhar para a sociedade e para o país que queremos ser, que fazem falta.
Matem o défice, deixem-no a descansar em paz por muitos anos e discutam políticas.
Nota: Por opção, o autor escreve segundo a antiga ortografia
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