Olhar para África com olhos de ver
A última geração portuguesa ultramarina dispõe de um capital excecional, a nível humano e técnico que custa ver perdido, e a crise económica e financeira contribuiu para um retorno português a África.
A 9 de maio de 1950, Robert Schuman proferiu a famosa declaração a que o seu nome ficará associado. No meio do texto, globalmente orientado para a partilha de recursos e para a construção da paz por via do estabelecimento de uma comunidade económica europeia, surge esta frase «Com meios acrescidos, a Europa poderá prosseguir a realização de uma das suas funções essenciais: o desenvolvimento do continente africano.»
Naquela data apenas a Libéria, a África do Sul, o Egipto e a Etiópia eram independentes, estando o restante continente africano sob domínio europeu. Cinco anos depois dar-se-ia a Conferência de Bandung e o “vento da história” mudou, dando azo à vaga de independências que terminaria com as dos territórios do Ultramar português.
Hoje os tempos são outros. Mas a diferença não deve fazer esquecer o essencial: o desenvolvimento do continente africano pode continuar a ser entendido como uma função europeia. Não numa lógica de dominação direta ou indireta, mas de parceria justa e mutuamente benéfica num quadro internacional de relações cada vez mais multipolar.
Ao dirigir-se ao seu homólogo, Presidente da Comissão da União Africana, Moussa Faki Mahamat, na décima reunião anual entre Comissões UA-UE a ter lugar em Addis Abeba, Ursula von der Leyen considerou que os dois continentes eram “parceiros naturais”. Essa naturalidade, conferida por séculos de história comum, que as suas sombras não apagam, deveria servir-nos de base para um novo olhar europeu sobre África. Ninguém melhor do que Portugal para emprestar à Europa uma perspetiva africana.
Mesmo que o nosso país se acanhe ou não se prepare para contribuir para uma abordagem comum, a UE dá sinais de ter percebido a relevância do continente africano. Só isso explica o facto de a Comissão se ter feito representar em Addis Abeba por vinte Comissários, assinalando por esta via a importância institucional daquele encontro euro-africano. Há que saudar o gesto e esperar que frutifique. Este merece ser replicado pelos Estados-Membros que, abandonando a perspetiva meramente extratora ou rentista, terão de olhar para África de modo mais sério e consequente.
O nosso país poderá contribuir com experiência e conhecimento concretos para uma nova fase de um relacionamento que se deseja mais paritário e mais centrado nas pessoas. A última geração portuguesa ultramarina dispõe de um capital excecional, a nível humano e técnico que custa ver perdido, e a recente crise económica e financeira contribuiu involuntariamente para um retorno português a África, em particular a Angola. Perderemos uma mais-valia que nos distingue coletivamente e que nos torna atrativos no quadro europeu se não forem mobilizadas a tempo vontades e meios que consolidem a experiência e a potenciem em saber, e que motivem novas gerações de portugueses a descobrir – com e como as anteriores – África, em particular a lusófona.
O Acordo de Cotonu, que regeu as relações UE-África nos últimos vinte anos, cessará a sua vigência no fim de fevereiro, e as negociações ACP (África, Caraíbas e Pacífico) – UE têm-se revelado difíceis e lentas. Independentemente do texto final que resulte do processo, o novo acordo será diferente e terá de atender a um relacionamento que, neste momento, se revela mais complexo e que conhece a concorrência de outros atores globais, bem como à digitalização, aos fenómenos migratórios e às ameaças ambientais, cada vez mais prementes.
No próximo dia 4 de março, o Vice-Presidente Borrell irá apresentar a Comunicação “Rumo a uma estratégia abrangente com a África” que visa preparar a Cimeira UE-África prevista para o fim deste ano. Lamentando que a Cimeira não tenha lugar sob Presidência portuguesa, como seria normal e justo que acontecesse, espero, ainda assim, que Portugal possa assumir o papel liderante que lhe cabe neste processo de parceria. Ganhamos todos se assim for.
*João Vacas é consultor da Abreu Advogados.
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