Antes eram jobs for the boys. Agora é money for the boys
Há várias formas de capturar o Estado. Colocar boys dos partidos na Administração Publica é apenas uma delas, talvez a mais primária e descarada. Mas há outras mais sofisticadas.
Jobs for the boys é uma prática enraizada no aparelho do Estado e acontece quando um partido chega ao poder e escolhe um dos seus para ocupar lugares num organismo público. O objetivo é compensar lealdades partidárias e colocar os boys em lugares chaves da Administração Pública para garantir o controlo da máquina do Estado e arredores.
Uma das grandes conquistas do país com a chegada da troika foi a criação da CRESAP, uma entidade cujo objetivo é garantir a isenção e independência no processo de recrutamento para os cargos de chefia no Estado. Já não basta ter cartão partidário e saber organizar jantares e comícios para se ter acesso àquilo que em linguagem culinária se convencionou chamar de ‘tacho’.
Também para evitar a captura do Estado, a troika impôs novas regras e uma lei-quadro para as entidades reguladoras com o objetivo de garantir a independência e os recursos necessários para exercerem as suas responsabilidades sem terem de prestar vassalagem ao poder político.
No entanto, os nossos políticos arranjam sempre maneira de dar volta à situação. Com os vetos de gaveta e os concurso à medida desvirtuaram aquilo que deveria ser a missão nobre da CRESAP. Agora, com as famosas cativações, o Governo está a colocar em risco um dos pilares do nosso Estado que é a independência de um sem número de entidades cuja missão é fiscalizar e regular, sem a interferência do poder político.
Agora já não se controla o aparelho do Estado apenas com os jobs for the boys, mas também com o money for the boys, ou seja, com o dinheiro que o Governo pode ou não libertar para os reguladores, conforme lhe der na gana, o que cria uma relação de dependência pouco saudável com entidades que assim veem comprometida a sua independência. E não sou eu que o digo, são as próprias que o dizem.
Para quem não tem estado atento às notícias dos últimos meses, eis uma resenha do que tem sido publicado na comunicação social:
- Entidade Reguladora da Saúde: “sem independência”
Este sábado, o Público fez manchete com a presidente da ERS a anunciar que as cativações do Governo “terão consequências graves para o desempenho das atividades da ERS e comprometem a sua independência”. Sofia Nogueira da Silva entende, e bem, que, ao abrigo da lei-quadro das entidades reguladoras e dos seus estatutos, não pode estar sujeita a cativações. - CMVM: sem dinheiro para salários
Foi das primeiras a ter coragem de assumir publicamente o problema das cativações. Gabriela Figueiredo Dias foi ao Parlamento revelar que não tinha dinheiro para pagar os salários de dezembro aos ‘polícias do mercado’. - Banco de Portugal: dividendos para o défice
Ainda no setor financeiro, os socialistas criticaram ferozmente o que diziam ser o elevado nível de provisões do Banco de Portugal, que deixava pouco dinheiro para entregar ao Estado para baixar o défice. O que valeu a Carlos Costa é que as regras europeias garantem que o Banco de Portugal goza de autonomia quase total e só tem de prestar contas ao Banco Central Europeu. - Novo supervisor: Governo quer ter uma palavra a dizer
Estas guerras com o Banco de Portugal e a CMVM acontecem numa altura em que o Governo apresentou uma sugestão para mudar o modelo de supervisão em Portugal, criando o Conselho de Supervisão e Estabilidade Financeira, em que o Governo terá uma palavra a dizer, esvaziando parte dos poderes dos restantes reguladores da banca e dos mercados e da própria Autoridade da Concorrência. Já não bastava tentar condicionar financeiramente o trabalho dos reguladores, agora o Governo também quer regular. - Autoridade da Concorrência: paga rendas com atraso
A Autoridade da Concorrência já veio dizer que por causa das cativações não tem conseguido pagar a tempo as rendas relativas ao edifício onde tem a sede e, além disso, tem falhado pagamentos a colaboradores. Margarida Matos Rosa já alertou que as cativações vão contra a lei-quadro dos reguladores, que prevê a autonomia e independência financeira e de gestão patrimonial. Lembrou ainda que a Concorrência é um bem público que está inscrito na Constituição da República Portuguesa. - Autoridade dos Transportes: não fiscaliza
A AdC não é a única a não conseguir pagar rendas: Também a Autoridade da Mobilidade e dos Transportes reconheceu publicamente que, por causa das cativações, falhou o pagamento de rendas e ações de fiscalização. - Anacom: cativações violam a Constituição
A Autoridade Nacional das Comunicações (Anacom) também foi alvo das cativações e decidiu tomar uma posição de força e confrontar o ministério das Finanças já que argumenta, e com razão, que as cativações são “incompatíveis com o direito da União Europeia e com a garantia constitucionalmente consagrada de existência de uma regulação económica independente”. - Entidade das Contas: não fiscaliza os partidos
O presidente da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP) veio avisar, em entrevista ao Público, para o risco de prescrição de muitos processos sobre contas dos partidos e campanhas eleitorais. José Eduardo Figueiredo Dias queixa-se da falta de meios: “Além dos três membros que compõem a direção, somos mais um técnico e dois assistentes técnicos. E é tudo!”. A Entidade das Contas queixa-se da falta de “pessoas, de assessores, de técnicos (juristas, gestores, contabilistas, técnicos de propaganda política, etc.), de assistentes técnicos e também de meios materiais, em particular de instalações e equipamentos.” - Tribunal Constitucional: não fiscaliza Siza Vieira
É preciso não esquecer que a ECFP queixa-se da falta de meios porque herdou do Tribunal Constitucional (TC) grande parte da responsabilidade de fiscalização das contas dos partidos, na altura da alteração à lei do financiamento que os partidos tentaram fazer à socapa. Quem pensou que o Tribunal Constitucional, ao perder competências, ia ficar mais folgado e com mais tempo para fiscalizar os currículos dos políticos, enganou-se. O caso de Siza Viera, revelado pelo ECO, mostrou um Tribunal sem capacidade e meios para analisar as “centenas de declarações”, como confirmou o seu presidente Costa Andrade.
Além de todas estas entidades que se queixam das cativações e da falta de meios, há ainda que acrescentar outras como a Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) ou a Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC).
Esta estratégia de deixar reguladores, supervisores e até tribunais a pão e água é um perigo para a democracia que precisa de entidades fiscalizadoras fortes e independentes do poder político. O que o Governo está a fazer encerra vários problemas:
- Um é técnico e jurídico de interpretação da lei, já que o Executivo entende, erradamente, que a lei do Orçamento se sobrepõe à dos reguladores;
- O segundo é financeiro e político. No discurso, o Governo passa uma mensagem de normalidade e facilidades, mas na prática continua a praticar austeridade encapotada;
- O terceiro, mais grave de todos, é o perigo de captura do Estado, colocando todos os reguladores ditos independentes sob a tutela do Ministério das Finanças e transformando-os em meras direções-gerais que respondem ao poder político porque, caso contrário, não terão dinheiro para pagar rendas, salários ou simplesmente para fiscalizar e regular. Isto abre a porta do Estado ao clientelismo, a interesses obscuros e àquela coisa muito portuguesa do ‘jeitinho’ e de ‘uma mão lava a outra’.
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