Os insuportáveis paradoxos dos novos estágios na advocacia

  • Nuno Cerejeira Namora
  • 9:58

Estamos a institucionalizar ‘estágios fast food’, em prejuízo da confiança que neles depositam clientes e agentes da justiça, e obrigando as sociedades a reajustarem os seus planos de carreiras.

De tudo na vida de um advogado, só o facto de ter já sido estagiário é inevitável. As áreas de prática, a forma de exercício da profissão, a carteira de clientes ou os rendimentos podem ser muito diferentes (até radicalmente diferentes), mas o estágio profissional, esse, é uma constante. Fica bem a qualquer advogado reconhecer que um dia foi estagiário, assim como deve qualquer pai lembrar que outrora foi filho. Esta persistente memória não serve para convocar uma qualquer forma de melancolia, como que reconhecendo no tempo, à laia do provérbio, um inimigo subtil que ataca fugindo. Antes, deve instar-nos a permanecer atentos à realidade dos advogados-estagiários de hoje, para que os possamos tratar como fomos ou gostaríamos de, na devida altura, ter sido tratados. Donde, não pode nenhum advogado com memória ficar indiferente às mudanças que estão aí à porta para os estágios de acesso à advocacia.

Um dos cavalos de batalha do anterior Governo e do PS na revisão da Lei das Associações Públicas Profissionais e dos Estatutos das Ordens, incluindo o da Ordem dos Advogados, foi a questão dos estágios de acesso. Das pretensões políticas então habilidosamente acopladas às metas do PRR, destacam-se duas: a remuneração obrigatória dos estágios e a redução da sua duração. Em tese, nenhum destes objetivos é condenável ou desajustado. O diabo, como sempre, está nos detalhes, e, neste caso concreto, na forma como se foi de um extremo ao outro sem qualquer preocupação de praticabilidade e contra tudo e todos.

Não se nega que o modelo de estágio de acesso à advocacia até aqui em vigor deixava a desejar: era habitual a repetição de conteúdos entre as cadeiras das faculdades e a formação dada pelos centros de estágio; os exames nem sempre eram adequados, não só pelo que avaliavam, mas sobretudo pelo que não avaliavam; as taxas pagas à Ordem dos Advogados eram elevadas (apesar de terem descido); o trabalho efetivamente prestado por estes jovens não era tantas vezes pago (alguns, pelo contrário, chegavam a ter de pagar – despesas, entenda-se – para estagiar); os procedimentos administrativos (quer na correção dos exames, quer na inscrição na profissão) eram exageradamente demorados e obsoletos; inexistia proteção social adequada para os estagiários, etc.

Ou seja, havia muito espaço para melhorar e era isso que se esperava do poder político: que dignificasse as fases preparatórias de acesso às profissões, mas sem ceder ao facilitismo ou ao laxismo. Todavia, o que o legislador decidiu coisa diversa: implodiu com o regime de estágio e criou uma série de paradoxos insuportáveis. A pretexto de ‘dignificar’ e ‘abrir’ ou ‘facilitar’ o acesso à advocacia veio, na prática, introduzir barreiras adicionais dificilmente ultrapassáveis que se prendem com a capacidade dos advogados e das sociedades absorverem os candidatos a estágio face à remuneração tabelada que terão de suportar. As novas regras, e na ausência de uma política pública robusta que apoie, ainda que parcialmente, a remuneração dos estagiários nos termos legalmente fixados, conduzirá inevitavelmente a uma elitização da advocacia (só os grandes e médios poderão contratar) e traduzir-se-á num numerus clausus de facto no acesso à profissão, o que contraria totalmente a lei e a lógica da reforma em curso.

Não quero ser mal interpretado: o trabalho deve ser pago e pago com dignidade. Além do mais, não tenho dúvidas que os estagiários, principalmente em fases mais adiantadas do seu percurso, executam tarefas em benefício dos seus patronos ou das organizações que integram, atividades esses que devem ser remuneradas. Mas tabelar um valor mínimo em 2024 de 1.025,00 € e em 2025 de quase 1.090,00 € é desconhecer o estado real da larga maioria da advocacia portuguesa, que se sujeita a um mercado precário e saturado.

A democratização no acesso à profissão, que se saúda, tem como contrapartida haver cada vez mais oferta de profissionais para um mercado que, do lado da procura, não tem crescido ao mesmo ritmo. Os portugueses – particulares e empresas – recorrem ainda pouco aos serviços jurídicos, seja por razões económicas seja por preconceito, tantas vezes em prejuízo dos seus legítimos direitos. A advocacia permanece sendo um exclusivo dos extremos sociais: das classes altas e das classes baixas, com a agravante de ser há muito indigna a remuneração que o Estado paga aos advogados no âmbito do acesso ao direito. Eis, aliás, mais um insuportável paradoxo: a manutenção das atuais tabelas de honorários no acesso ao direito (incluindo já a tímida revisão negociada) e a imposição de remunerações mínimas aos advogados-estagiários na casa dos mil euros, é mesmo o Estado a seguir a máxima de Frei Tomás… faz o que ele diz, não faças o que ele faz!

Além da questão da remuneração, o novo modelo contém também outros aspetos igualmente problemáticos: a duração do estágio de doze meses e o fim do exame de agregação, substituído por um trabalho sobre um tema referente à deontologia profissional e avaliado por um júri de independentes. É um erro: doze meses não é suficiente para um jovem apreender o significado do exercício da advocacia e da sua prática. E também não é suficiente para cumprir todas as obrigações em termos de elaboração de peças processuais, e de realização de assistências e de intervenções que a Ordem dos Advogados propõe (extraordinariamente!) que sejam aumentadas. Já quanto ao novo modelo de avaliação, também não se percebe: além de não existirem inesgotáveis temas deontológicos, a substituição de um exame escrito por um mero trabalho seguido de uma discussão oral é manifestamente insuficiente. E caímos num outro paradoxo: ao mesmo tempo que se obriga a remunerar o trabalho dos advogados-estagiários diminui-se largamente o que se lhes é exigido para concluírem com sucesso o estágio, quando o inverso é que seria natural. Estamos a institucionalizar ‘estágios fast food’, em prejuízo da confiança que neles depositam clientes e agentes da justiça, e obrigando as sociedades de advogados a reajustarem os seus planos de carreiras.

O paradoxo das novas regras é evidente: por se querer dar melhores condições aos advogados-estagiários (pretensão inteiramente justa!), limita-se de facto o acesso à profissão e diminui-se o grau de exigência. Para os advogados com memória estas não são boas notícias.

  • Nuno Cerejeira Namora
  • Sócio fundador da Cerejeira Namora, Marinho Falcão

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