Poder escolher

A Apple vai mudar uma definição do iPhone que obriga as aplicações a obterem o consentimento dos utilizadores antes de registarem o seu comportamento. Querem vigiar-me na internet? Peçam-me primeiro.

O Afonso é mergulhador e comprou umas barbatanas que foram uma pechincha. Nem tinha por hábito aceder àquela loja. Não fosse o anúncio que lhe apareceu na pesquisa e a oportunidade teria escapado certamente.

Histórias como a do Afonso não são propriamente comuns. Não fosse ele uma personagem inventada por mim, o mais certo era o Afonso ter ignorado por completo aquela publicidade.

Provavelmente, até estaria a usar um ad-blocker, as extensões do Chrome e do Firefox que escondem os anúncios e aceleram as páginas na internet.

Todos os dias, somos expostos a milhares de marcas. Mas faça um pequeno esforço: lembra-se de algum anúncio das páginas em que esteve antes de chegar até aqui? É natural que não os tenha visto. A taxa de conversão média é relativamente reduzida.

E as marcas sabem isso. Por isso, os anúncios não aparecem de forma aleatória. São escolhidos por algoritmos que conhecem muito bem o Afonso, mas também a Joana, a Maria e a Inês. Seria de argumentar que os conhecem até melhor do que eles a si próprios. E como? Seguindo-os e vigiando-os por onde quer que “naveguem” na rede.

No caso do Afonso – que, lembre-se, é mergulhador –, há vários dias que andava à procura de umas barbatanas. O algoritmo sabia isso. E mostrou-lhes as da loja que lhe paga mais.

O Afonso somos todos nós. Enquanto saltamos de página em página, empresas como a Google e o Facebook vão registando silenciosamente o que estamos a fazer. Estes nossos dados alimentam a máquina geradora de receitas que serve de base à indústria da publicidade digital.

No caso da Google, a empresa anunciou recentemente que vai abdicar desta prática no próximo ano. Sobre isso, como aqui escrevi, teremos de esperar para ver e só opinar depois.

Mas imaginemos, então, que o Afonso não usa ad-blocker e até queria ver aquela publicidade. Deveria ter a opção de escolher ver publicidade mais “relevante” e adaptada aos seus gostos – a opção de decidir.

É a lógica que vai ser seguida pela Apple. A nova versão do iOS vai exigir que as aplicações que queiram vigiar o comportamento dos seus utilizadores tenham de obter consentimento para isso.

A novidade é tão simplesmente esta: um botão que costuma estar ligado, vai passar a estar desligado. Quem quer, liga. Quem não quer, não o liga.

Foi o suficiente para deixar algumas empresas em total desespero.

Na China, gigantes bem conhecidas já estão a trabalhar em esquemas para contornarem a medida da Apple. No ocidente, o Facebook tem liderado o coro de críticas à decisão da fabricante do iPhone.

Apesar de a alteração da Apple ainda não estar em vigor, a rede social já começou a pedir aos utilizadores que aceitem a “vigilância” e até enviou e-mails aos anunciantes, alertando que a mudança vai ter impacto na quantidade de pessoas que serão capazes de alcançar.

Só que a verdadeira preocupação do Facebook será outra: os 84,17 mil milhões de dólares que gera anualmente com a venda do comportamento dos seus utilizadores no negócio da publicidade, e que poderão estar parcialmente ameaçados.

Ora, se um simples botão no iPhone pode fazer desabar um negócio, então, até fazem algum sentido as críticas da Apple dirigidas ao Facebook. Tim Cook considera que o negócio da rede social “não é sustentável” porque os utilizadores “não podem ser o produto”.

O Afonso deve poder escolher não ser seguido. Como também deve poder escolher ver anúncios mais relevantes. A transparência é importante e o mercado da publicidade digital, se quiser ser “sustentável”, tem muito a ganhar com isso.

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