Porto, onde estão as tuas elites?
Vivemos num país inclinado sobre Lisboa, regionalmente profundamente desigual e, em última instância, inquinado. 150 anos depois, Eça de Queiroz é ainda tão atual.
Creio que Alberto João Jardim não se incomodará que conte esta história. No fim da nossa conversa para o meu podcast -– A conversar é que a gente se entende –, já em off, falávamos sobre regionalismos. Com a sua franqueza característica, Alberto João perguntou-me pelas nossas elites nortenhas, especialmente as do Porto, afirmando que a causa do centralismo era o seu adormecimento. E é justamente sobre isso que escrevo hoje.
Esta semana, numa das vezes que ouvimos na FEP um professor dizer que somos a futura elite deste país, dei por mim a pensar – mas elite de quê? De onde? Puxei pela cabeça para me lembrar de um primeiro-ministro (PM) no pós-25 de abril que tivesse estudado na Universidade do Porto. Depois, de um Presidente da República (PR) ou de um presidente da Assembleia da República (PAR), para além de Santos Silva. Julguei que fosse falha da minha memória e vim para casa investigar esses números.
A realidade é ainda mais assustadora do que a sabia ou pensava. Dos 40 titulares dos supracitados cargos, ao longo dos últimos 50 anos, 29 (72,5%) licenciaram-se em Lisboa. Em 17 PM, 16 eram licenciados e destes 14 cursaram em Lisboa. 55% destes 40 titulares estudaram Direito ou cursos sucedâneos e 40% (16) estudaram na mesma faculdade, na FDUL. Montenegro é o primeiro PM a estudar fora de Lisboa desde 1979, quando Carlos Mota Pinto ocupou o cargo. Desde 1975, com Costa Gomes, todos os PR estudaram em Lisboa. Se somarmos apenas PR e PM, dos 24 titulares, 20 estudaram em Lisboa. Se quiserem olhar para os dados com mais calma – aqui têm o link.
Foi neste momento que me lembrei da conversa com Alberto João Jardim e pensei exatamente o mesmo. A minha universidade, a prestigiada Universidade do Porto, formou apenas um PR, não eleito, e um PAR. Das nossas faculdades nunca saiu, pelo menos em democracia, um PM. Há universidades com o objetivo de formar um prémio Nobel, mas o desígnio da Universidade do Porto tem mesmo de ser formar um Primeiro-Ministro.
Pensemos nas elites regionais e os objetivos que podem almejar. Desde 1990, a Câmara Municipal de Lisboa teve 7 presidentes, destes: um veio a ser PR, dois vieram a ser PM, outro veio a ser ministro das Finanças e outro ainda, filho de um ex-PR e PM, ainda foi ministro da Cultura. No mesmo período, a Câmara Municipal do Porto teve quatro presidentes, daqui saiu: um azarado ministro da Administração Interna e um malogrado líder da oposição.
É evidente que esta análise merecia ser aprofundada, olhando para um conjunto de outros lugares cimeiros da nossa vida coletiva, mas talvez destes números já consigamos, por um lado, perceber a origem desta desigualdade e, por outro, tirar as ilações mais relevantes.
Estar fora de Lisboa é estar fora do centro do poder, é ignorar um conjunto de personalidades relevantes para a ascensão e é não frequentar os mesmos sítios que a bolha da capital. Mais grave é quando não convives com Lisboa e não o escondes ou te orgulhas de uma origem diversa. Não fica impossível, mas o caminho é bem mais espinhoso. Ainda hoje há muitas pessoas que não perdoam a Cavaco Silva esse atrevimento.
Mais significativas ainda são as consequências desta espécie de poker dealer, que distribui sempre para o mesmo grupo as cartas do poder. Não é possível que as pessoas mais competentes do país para determinadas áreas sejam tão frequentemente do mesmo grupo de amigos. Somos dirigidos por apelidos repetidos, até por famílias sentadas no mesmo conselho de ministros e a aptidão não é hereditária.
Temos há décadas líderes que nunca conheceram o país fora de uma cidade, ou mesmo fora de Lisboa e isso tem consequências. Quando a vida daqueles que nos governam é consideravelmente a mesma, o tipo de governo será sempre a pensar nessas pessoas, mas o país é mais do que isso. São escolas públicas enfraquecidas e esquecidas há muitos anos. São hospitais públicos decrépitos ou sem condições para acolher aqueles que deles precisam. São redes de transportes públicos ineficazes a cumprir o seu propósito, tantas vezes com atrasos ou avarias, etc.
Vivemos num dos países mais centralizados da UE, com prejuízo claro para o desenvolvimento. Até a despesa pública é centralizada em Lisboa e os três maiores beneficiários do PRR são os municípios de Lisboa, Oeiras e Setúbal. O Norte e o Centro do país têm um PIB per capita equiparável ao da Grécia (68% da média da UE), o de Lisboa é equiparável ao francês (102% da média). Este outro país não é esquecido, simplesmente é desconhecido pela vasta maioria dos que nos governam.
Vivemos num país inclinado sobre Lisboa, regionalmente profundamente desigual e, em última instância, inquinado. Quando é o Porto, localmente centralizador, a queixar-se do magnetismo de Lisboa, só nos pode fazer pensar no quão atrás parte o resto do país. Nascer fora da capital significa não ter um conjunto de hipóteses, partir milhas atrás ou ter lugares vedados. Já no século XIX, Eça Queiroz escrevera: “Lisboa é Portugal. Fora de Lisboa não há nada. O país está todo entre a Arcada e S. Bento!”. Triste é, 150 anos depois, Eça ainda ser tão atual.
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