Primeiras ilações a retirar do caso Luanda Leaks: “quatro olhos veem melhor do que dois”

  • Cláudia Fernandes Martins
  • 5 Fevereiro 2020

Leia aqui o artigo de opinião da sócia da Macedo Vitorino, Cláudia Fernandes Martins, sobre o caso Luanda Leaks.

Nos últimos dias, o caso “Luanda Leaks” tem feito correr muita tinta nos meios de comunicação social. Para além dos alegados contornos do caso em questão, o qual envolve várias empresas nacionais, em particular, a EFACEC, NOS, GALP, EuroBic, não se tratando, por conseguinte, de uma matéria do foro exclusivo das autoridades angolanas, uma das mensagens que tem passado é a de que como o óbvio acabou por passar despercebido.

O que falhou afinal? Ou melhor, se quisermos generalizar, o que está a falhar?

Infelizmente, começa a tornar-se hábito que as investigações jornalísticas se substituam a um trabalho que deveria ser feito, a título preventivo, pelas próprias empresas (utilizando recursos internos e externos), e, a título de controlo e supervisão, pelas autoridades competentes.

Para as empresas, não é certamente novidade a necessidade de implementação de princípios, práticas e procedimentos, ao abrigo dos quais se cumpram elevados padrões de ética e profissionalismo, por forma a evitar que possam ser utilizadas ou sujeitas a práticas ilícitas como é o caso, por exemplo, do branqueamento de capitais.

Na sua atuação, a lei impõe que as empresas fiquem sujeitas ao cumprimento de um conjunto de deveres preventivos de controlo, de identificação e diligência e de formação, obviamente, de forma proporcional à sua natureza, atividades, dimensão e complexidade.

Em geral, as empresas estão vinculadas a um dever de adotar medidas de controlo e gestão de riscos, o que pressupõe um prévio procedimento de “Customer Due Diligence” (CDD), para que se institua um procedimento adequado de “Know Your Customer” (KYC).

Um CDD consiste numa análise qualitativa dos riscos de branqueamento de capitais relativamente a determinada pessoa ou entidade, que implica: (i) a identificação e verificação da respetiva identidade; (ii) a identificação e verificação da identidade do seu beneficiário efetivo; (iii) traçar um perfil de risco; e (iv) um controlo contínuo por forma a preservar e atualizar a informação previamente recolhida e que permita identificar e proceder à denúncia de operações suspeitas.

Em complemento aos procedimentos de identificação, que, no caso, por exemplo, das instituições financeiras, devem ser mais rigorosos, é ainda imperativo proceder à obtenção de informação sobre a finalidade e a natureza da relação de negócio, a origem e o destino dos fundos movimentados (em particular, quando o perfil de risco ou as características da operação o justifiquem), bem como a manutenção de um acompanhamento contínuo da relação de negócio.

Há, inclusivamente, situações específicas que devem, de imediato, despoletar controlos reforçados, nomeadamente, quando estão em causa pessoas politicamente expostas (PEP – “Politically Exposed Persons”) e titulares de outros cargos políticos ou públicos, o que é extensível aos seus membros próximos da família, em particular, ascendentes e descendentes diretos em linha reta da PEP.

Todos estes controlos são necessários a fim de assegurar que as operações realizadas no decurso de determinada relação são consentâneas com o conhecimento que uma dada entidade tem das atividades e do perfil de risco da contraparte e, sempre que necessário, da origem e do destino dos fundos movimentados.

Com efeito, neste caso, a pergunta não é, provavelmente, o que falhou, mas antes como falhou?

A resposta não é certamente unívoca, mas poderá ensaiar-se uma: não foram feitas as perguntas certas, seja lá porque razão foi, e poderão ter sido muitas, desde, por exemplo, a falta de adequação de mecanismos de “compliance”, em particular, nos casos em que há opacidade de informação ou até mesmo formação insuficiente ao nível das práticas instituídas; uma cultura de falta de rigor ou de inércia porque sempre assim foi e até aqui ninguém questionou – como se o decurso do tempo e o enraizamento de determinadas práticas conferissem um selo de validade (e de impunidade) ao que foi feito e será feito no futuro.

Ora, se não se fazem as perguntas certas, muito dificilmente se obterão as respostas certas. Um sistema de controlo e, em particular, de controlo reforçado não se coaduna com o preenchimento de um formulário “standard”, com múltiplas opções (também elas “standard”), no qual se coloque uma cruz em determinada opção. Por exemplo, “Qual é a origem dos fundos” e de entre o elenco de respostas surge “Dividendos”, “Herança”, “Rendimentos Profissionais”, etc..

Esta prática traduz-se num verdadeiro controlo? Não, claro que não. Obviamente que, formalmente, a empresa pode dizer que cumpriu os deveres de controlo a que se estava obrigada, mas, materialmente, não é verdade.

O “compliance” não se pode limitar a um “compliance” formal, não é suficiente cumprir um conjunto de requisitos formais, que, na prática, desvirtuam o resultado da análise e que são isentos de preocupações de natureza ética, que são fundamentais em uma análise como a que estava em causa.

No caso concreto, estamos a falar de uma pessoa que por ser um descendente direto de uma PEP, era ela própria uma PEP e, portanto, com um perfil de risco que exigia controlos mais reforçados e que se tivessem feito questões mais rigorosas quanto à origem dos fundos e ido ao real cerne da questão. Ou seja, como foi afinal construída a fortuna de Isabel dos Santos?

Para procurar obter as respostas certas, o preenchimento de uma cruz numa opção predefinida não era certamente, neste caso, como não é em muitos, o meio mais adequado. Isto obriga a que, cada vez mais, as empresas se vejam continuamente obrigadas a avaliar se as práticas adotadas são afinal adequadas.

Para isso, devem recorrer, de forma periódica, a auditorias externas realizadas por terceiras entidades, cujo objetivo não deve ser o de repetir a análise que já foi feita pela própria empresa ou por terceiros, mas identificar lacunas (“gaps”), que permitam à empresa não ficar limitada a uma única opinião e, portanto, viciada quanto à (in)adequação das práticas instituídas.

Anualmente, o objetivo das empresas deveria ser o de contratarem um terceiro isento para a realização de uma auditoria externa com o objetivo único de procurar lacunas. E todos os anos, deveriam repetir o mesmo procedimento, recorrendo sempre a uma terceira entidade distinta da do ano anterior. Só, assim, se garantido a imparcialidade necessária.

Questionar de forma crítica e isenta é importante, sendo caso para dizer que “quatro olhos veem melhor do que dois”, mas, sem dúvida, que o “pior dos cegos é aquele que não quer ver”.

 

*Cláudia Fernandes Martins é sócia da Macedo Vitorino.

  • Cláudia Fernandes Martins
  • Sócia da Macedo Vitorino

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