Provas, peritos e Estado de Direito
Em suma, e também quanto à prova e a questões periciais, à Justiça o que é da Justiça. É o que se impõe num Estado de Direito, confiante na independência dos seus tribunais.
A propósito de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), datado de 11 de novembro de 2020, relativo a habeas corpus concedido nos Açores. Na sequência da realização de testes RT-PCR, a Autoridade Regional de Saúde (ARS) territorialmente competente ordenou o confinamento obrigatório de vários indivíduos, um por ser portador do vírus SARS-CoV-2 e os demais por serem contactos com exposição de alto risco.
Consequentemente, foi apresentado pedido de habeas corpus em favor dos referidos indivíduos, o que foi concedido. A mesma ARS recorreu da decisão, por considerar, designadamente, que dada a prova (testes RT-PRC) existente, não se justificava a concessão do habeas corpus.
Da fundamentação da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) consta, além do mais, referência a dois artigos de “peritos” que fariam duvidar da “fiabilidade” daqueles testes (pontos 6.17.iii. e 6.18 do acórdão) e, assim, da prova pretendida com os mesmos. Tal suscitou críticas veiculadas pela comunicação social relativas à (in)capacidade das entidades judiciárias se imiscuírem em tais assuntos.
Lido o acórdão do TRL, constata-se que a decisão foi meramente formal, no sentido da rejeição do recurso por falta de legitimidade e de interesse em agir da recorrente. No entanto, “e para paz e sossego das consciências” (ponto 6.10. do acórdão), foram adiantadas no texto do acórdão algumas considerações em que se incluem a referência aos tais artigos de “peritos”. O que, por sua vez, motiva as reflexões que se seguem.
O presente acórdão evidencia a coexistência de poderes soberanos diversos (administrativo vs judicial) e capacidades funcionais distintas (questões de saúde vs questões de direito). Esta coexistência aparenta gerar confronto ou até tentativa de sobreposição, ao constatar-se que, após decisão judicial favorável ao habeas corpus, veio a ARS recorrer da mesma, sem que a lei lhe confira sequer legitimidade para tal.
Sendo esta uma questão regulada em sede processual penal, embora relativa a providência diretamente consagrada na Constituição da República Portuguesa, cremos que será de adotar um raciocínio vinculado ao processo penal vigente.
Os “peritos”, como tal referidos no texto do acórdão, não o seriam em termos técnicos, pois não ocorreu nem ocorreria qualquer produção de prova pelos mesmos, menos ainda numa decisão meramente formal de rejeição do recurso.
O perito, em processo penal, é um perito oficial (e não de parte), porque indicado direta ou indiretamente pela autoridade judiciária que ordena a perícia, sendo independente e imparcial no desempenho da sua função. Por isso, perito, em processo penal, não será certamente um qualquer auto ou hétero-intitulado especialista na matéria (ainda que seja efetivamente especialista), e menos ainda um qualquer agente, mesmo que reconhecidamente especialista, atuando em “causa própria” do seu interesse funcional ou institucional.
Quanto ao juízo pericial emitido, sendo prova à partida subtraída à livre apreciação do decisor, pode inclusive ser afastado pela própria convicção fundamentada do tribunal (situação em que seriam úteis elementos de fundamentação como os artigos de “peritos” indicados no texto do acórdão do TRL).
Se estiver em causa perícia médico-legal, ato eminentemente médico, curial será constatar que, em processo penal, esta será realizada na esfera do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, Instituto Público, que tem natureza de laboratório nacional do Estado e prossegue atribuições do Ministério da Justiça, sob superintendência e tutela do membro do governo responsável pela área da justiça.
Assim se constata que, em sede judicial, a prova pericial, a ser realizada – o que aqui não ocorreu – é pautada pela valoração em conformidade com a função judicial em curso. E que a prova pericial médico-legal é institucionalmente enquadrada e é-o em torno do Ministério da Justiça.
Em suma, e também quanto à prova e a questões periciais, à Justiça o que é da Justiça. É o que se impõe num Estado de Direito, confiante na independência dos seus tribunais, porque sujeitos apenas à Lei.
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