Quem guarda o guarda?

  • Pedro Vaz
  • 11 Novembro 2020

Nenhum regulador (ERSE ou ERSAR) se têm mostrado preocupado com os custos financeiros, económicos, sociais e ambientais que implica deixar de valorizar energeticamente os resíduos.

As recentes notícias sobre a tomada de posição da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), acerca da bonificação da tarifa de venda da eletricidade produzida pelos sistemas de gestão de resíduos, não deixam de ser reflexo da evolução acelerada para uma institucionalização de um novo poder – O poder regulatório. Aos tradicionais poderes executivo, legislativo e judicial, assistimos ao surgimento do poder dos media (4º poder) e, hodiernamente, a emersão de um eventual novo poder fundado na cada vez maior intervenção da apelidada maior especialização técnica destes novos entes administrativos independentes – as Entidades Reguladoras.

A importação para Portugal e para a União Europeia do modelo americano deste tipo de entes reguladores radicam essencialmente em duas premissas que, ainda hoje, se não verificam inteiramente em Portugal: a crescente liberalização da atividade económica e uma eventual capacitação técnica que os governos não disporão.

Não se pretendendo aqui discutir o papel destas entidades reguladoras assinala-se, porém, que o caminho do “Estado Regulador”, em Portugal, muito terá de trilhar até ao ajustamento deste novo modelo. Em especial quanto à legitimidade destas entidades para regular mercados que não o são, uma vez que são exclusividade pública (como é o caso dos setores da água e dos resíduos), bem como para exercer um poder, exagerado quanto a nós, na definição das opções políticas dos governos cujo poder deriva da legitimidade democrática do voto popular. Veja-se a este título, as recentes tensões entre o Governo e a ANACOM, a propósito do 5G, e entre o Governo e a ERSAR, a propósito dos biorresíduos.

Havendo, ainda, muitos problemas para resolver quanto à utilidade efetiva da regulação destas entidades, nomeadamente no setor bancário e financeiro, uma vez que, aparentemente, não têm intervindo de forma a impedir as práticas abusivas e ilegais de alguns dos regulados. É, no entanto, inegável o contributo que estas entidades têm dado quanto a alguma transparência da atividade dos setores que por si são regulados.

Tudo isto a propósito da remuneração da energia produzida e injetada na rede a partir das centrais de produção energética resultante da incineração de resíduos, detidas pelos sistemas multimunicipal e intermunicipal de gestão de resíduos Valorsul e Lipor, a que dedicaremos algumas linhas.

Ambos os sistemas têm há 20 anos um modelo económico de atividade que tem como principal fonte de receita a venda da energia elétrica que é produzida essencialmente pelas centrais de valorização energética, vulgo, incineradoras.

Esta comercialização de energia beneficiou, ao longo dos anos, de uma bonificação no preço, o que permitiu a ambos os sistemas de gestão de resíduos urbanos a saúde financeira para reinvestir nas melhores técnicas disponíveis, expandir a recolha seletiva de resíduos e sua valorização e apoiar os municípios (simultaneamente clientes/fornecedores/sócios/ acionistas dos sistemas) nos avultados investimentos a fazer para melhorar a gestão de resíduos nos seus territórios, que abrangem mais de 2 milhões e 600 mil pessoas.

Esta valorização energética tem permitido que os tristes números nacionais de deposição de resíduos em aterro (em 2019 e de acordo com o RARU, 57,6% da totalidade dos resíduos urbanos produzidos), não sejam ainda mais catastróficos.

Como é do conhecimento público, veio a ERSE questionar o prolongamento da venda bonificada da energia produzida por estes 2 sistemas, com base em dois argumentos essenciais o sobrecusto médio de 13,3 milhões de euros/ano até 2023 nos consumidores de eletricidade (Parecer da ERSE de 12 de outubro de 2020) e que esta subsidiação poderá representar subsidiação cruzada e eventuais auxílios de estado não permitidos.

Em nosso entender, esta interpretação do regulador energético padece de um viés na “leitura do contador”.

Desde logo a preocupação com este sobrecusto que, e de acordo com a própria ERSE, representa pouco mais de 1% nos mais de 1,03 mil milhões de euros de sobrecusto com renováveis a um preço médio de 88 euros MWh, enquanto a energia produzida a partir de biomassa tem um custo de 120 euros MWh, a partir do vento de 93,8 euros MWh, de pequenas centrais hídricas 97,4 euros MWh e de fotovoltaica 298 MWh. Está bom de ver que mesmo com um sobrecusto para a totalidade dos consumidores a grandeza do valor a que nos referimos está muito longe de ser considerado como a causa do elevado preço da eletricidade que todos pagamos (vide https://expresso.pt/economia/2019-12-20-Renovaveis-fatura-para-as-familias-em-2020-sera-a-mais-baixa-em-9-anos).

Acrescente-se, ainda, que até ao momento nenhum regulador (ERSE ou ERSAR) se têm mostrado preocupado com os custos financeiros, económicos, sociais e ambientais que implica deixar de valorizar energeticamente os resíduos e passar a depositá-los novamente em aterro, à espera que de um dia para o outro, como que por magia, todos os resíduos se reciclem. Qual é o custo para o país o não cumprimento das metas ambientais que nos propomos junto da UE? Qual é o custo ambiental, social e económico, para as próximas gerações, não valorizarmos energeticamente os resíduos que não têm retoma e consequente reciclagem? Estes valores também deverão ser tidos em conta quando falamos dos custos para os portugueses das várias alternativas em cima da mesa.

Quanto à questão dos Auxílios de Estado, recorda-se que a atividade de gestão de resíduos urbanos é serviço exclusivamente público, de titularidade pública, parcialmente concessionado, não estando privatizado. Os sistemas de gestão em alta fazem-no em regime de exclusividade, não estando a operar num qualquer mercado liberalizado. Admitindo-se, porém, que esta bonificação de energia não possa estar dentro de nenhuma isenção categorial, não é de todo estranho que, através dos procedimentos de notificação, não seja considerado pela Comissão como admissíveis, como a jurisprudência do TJUE dará a entender, nomeadamente através do conhecido Acórdão “Altmark”.

A complexidade da arquitetura da gestão de resíduos no país, com vários pontos de pressão (legal, económico, social e ambiental), não se coaduna com a visão excessivamente sectorial dos reguladores, que reduzem toda a política ambiental a valores em euros num curto prazo, ignorando que a realidade vai muito para além do seu âmbito de especialização. Encontramos, mesmo, uma certa arrogância por parte das entidades reguladoras na leitura que, estas, fazem da defesa do interesse público, como se o Governo da República ou os governos dos municípios não estejam democraticamente legitimados para, também eles, o defenderem.

  • Pedro Vaz
  • Jurista, com especialização em Direito do Ambiente, Energia e Recursos Naturais

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