Recuperação dos Auxílios de Estado à Zona Franca da Madeira: a arbitragem tributária como forma de assegurar o direito de acesso à justiça
Portugal começa por não dispor de regulamentação específica relativa à recuperação dos Auxílios Estatais concedidos sob a forma de benefícios fiscais.
Foi finalmente publicada no JOUE, do passado dia 22.08.2022, a Decisão da CE 2022/1414, de 4 de Dezembro de 2020, que concluiu que, o denominado Regime III da Zona Franca da Madeira (ZFM), que vigorou entre 1 de janeiro de 2007 e 31 de dezembro de 2020, autorizado em tempo pela Comissão, ao abrigo do Regime de Auxílios de Estado de finalidade regional, tem vindo a ser aplicado por Portugal de forma ilegal.
Resultado dessa Decisão, em termos sumários, Portugal encontra-se agora obrigado a recuperar das empresas instaladas na ZFM, a diferença entre a taxa reduzida de que beneficiaram e a taxa geral de IRC em vigor na Região Autónoma da Madeira durante esse período. A imprensa tem abordado o tema sob um prisma político-económico, focando-se na legitimidade da Comissão para fazer uma “interpretação autêntica” de um Regime cuja letra da lei literalmente aprovou há 15 anos e na defesa do Estado Português da sua atuação, mas sobretudo no impacto da Decisão para o futuro da Região Autónoma da Madeira, nas receitas fiscais e no emprego gerados pela ZFM. Mas quase nada tem sido dito ou escrito sobre os desafios que o processo de recuperação dos Auxílios coloca à Administração Fiscal e à Justiça Tributária, que compromete a efetividade do direito de acesso à justiça das empresas visadas.
O processo de recuperação começou já no passado mês de Julho, quando a Autoridade Tributária (“AT”) expediu as primeiras notificações para exercício do direito de audição das empresas visadas, o qual, procedimentalmente, precede a emissão das eventuais liquidações corretivas adicionais de IRC. Segundo informação oficial, serão visadas mais de 300 empresas, estando a ser questionado o direito ao benefício fiscal da taxa reduzida de IRC de 5% para os exercícios fiscais a partir de 2012, inclusive. Para se ter uma ideia da magnitude do impacto financeiro da Decisão e das suas implicações para as empresas, para a Administração Tributária e, nos próximos (muitos) anos, para a justiça fiscal, estima-se que a liquidação adicional de mais de 800 milhões de IRC e a emissão de milhares de notas de liquidações adicionais de IRC. Trata-se do maior processo de liquidação e cobrança de impostos de que há memória na história da democracia em Portugal.
Ora, Portugal começa por não dispor de regulamentação específica relativa à recuperação dos Auxílios Estatais concedidos sob a forma de benefícios fiscais. A AT não parece ter recursos humanos suficientes, com a formação específica exigida, para analisar e avaliar individualmente cada uma das milhares de respostas aos direitos de audição e reclamações e recursos hierárquicos que se poderão seguir às liquidações. Mais ainda quando a AT, possivelmente devido à escassez de recursos e a pressão para iniciar o procedimento, não recolheu efetivamente informação suficiente para proceder ao correto apuramento dos auxílios e vai ter agora de apreciar toda a prova produzida pelas empresas em sede de audição prévia.
Na realidade, este procedimento começou pelo fim, pela notificação de um projeto de liquidação de imposto aos contribuintes quando, verdadeiramente, o trabalho de definição de critérios e de aferição do seu cumprimento está ainda por fazer. Tudo isto, numa Região que dispõe de um tribunal tributário, atualmente com um único juiz, não reconhecendo a Administração Fiscal Regional a competência do Centro de Arbitragem Administrativa e Tributária como meio alternativo de resolução de litígios fiscais…
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