Reformular o sistema de justiça antes que vá a pique
A descredibilização imparável das nossas instituições em geral e da justiça em particular tem ocupado dias consecutivos de interrogações, será mesmo que poderemos confiar no Ministério Público?
O cargo de Procurador-Geral da República constitui a única função do Ministério Público e da magistratura dos tribunais judiciais sujeita a nomeação pelo poder político, mas gozando de um estatuto de independência desse mesmo poder político, com um mandato de seis anos, no caso vertente só terminará em outubro de 2024.
Em termos meramente formais, os nossos Procuradores-Gerais são independentes, mas, na prática, não o são. E não o são porque a respetiva tutela, o Ministro da Justiça, pode: a) transmitir ao Procurador-Geral da República instruções de ordem específica nas ações cíveis e nos procedimentos tendentes à composição extrajudicial de conflitos em que o Estado seja interessado, bem como autorizar o Ministério Público a confessar, transigir ou desistir nas ações cíveis em que o Estado seja parte (a possibilidade de transmitir instruções, de ordem genérica ou específica, não existe nas ações penais); b) requisitar ao Procurador-Geral da República relatórios e informações relativas a qualquer agente do Ministério Público; c) solicitar ao Conselho Superior do Ministério Público informações ou esclarecimentos que entender convenientes; e d) instar o Procurador-Geral da República a proceder a inspeções, sindicâncias e inquéritos, designadamente aos órgãos de polícia.
No que respeita a hierarquia do Ministério Público temos o Procurador-Geral da República, seu chefe máximo, com poderes de direção, de categoria e de intervenção processual sobre os demais magistrados, a saber, o Vice-Procurador-Geral da República, os Procuradores-Gerais-Adjuntos e os Procuradores da República. São todos igualmente magistrados do Ministério Público, magistrados na qualidade de procuradores europeus delegados, e deles provém o representante de Portugal na EUROJUST e respetivos adjunto e assistente.
Compete ao Procurador-Geral da República dirigir, coordenar e fiscalizar a atividade do Ministério Público e emitir as diretivas, ordens e instruções a que deve obedecer à atuação dos respetivos magistrados.
O Conselho Superior do Ministério Público é o órgão através do qual a Procuradoria-Geral da República faz uso da sua competência para nomear, colocar, transferir, promover, exonerar, apreciar méritos profissionais, exercer ações disciplinares e, em geral, praticar todos os atos de idêntica natureza respeitantes aos magistrados do Ministério Público, (com exceção do Procurador-Geral da República).
Na sede de cada distrito judicial existe uma Procuradoria-Geral Distrital, na qual exercem funções Procuradores-Gerais-Adjuntos, com a função de ali dirigir, coordenar e fiscalizar a atividade do Ministério Público, para além da emissão de ordens e de instruções várias.
No sistema anglo-saxónico, e em especial nos EUA, os procuradores fazem parte do poder executivo e podem ser demitidos pelo presidente do país, sem justa causa, ao passo que, no Reino Unido, os procuradores têm poderes muito limitados, dependendo, formalmente, do poder legislativo.
A Procuradoria da Coroa (Crown Prosecution Service) constitui a autoridade independente responsável por levar a tribunal os casos investigados pela polícia em Inglaterra e no País de Gales. É supervisionada por um procurador-geral (attorney-general), que responde pela referida Procuradoria da Coroa perante o Parlamento. A Inglaterra e o País de Gales estão divididos em 42 zonas, cada uma das quais chefiada por um procurador-chefe da Coroa (chief crown prossecutor).
Chefia a Procuradoria da Coroa um diretor dos procuradores públicos (director of public prosecutions), que toma decisões acerca dos casos mais complexos e delicados, aconselhando a polícia relativamente a questões penais. Esse diretor é, ao mesmo tempo, responsável último pelas acusações deduzidas pela referida Procuradoria da Coroa, respondendo perante o procurador-geral.
A Procuradoria da Coroa emprega procuradores e procuradores-adjuntos, assim como investigadores e administradores. Os procuradores da Coroa são advogados experientes e com a responsabilidade de levar casos penais a tribunal. Os procuradores-adjuntos procedem à revisão e apresentação, em tribunal de magistrados, de um leque reduzido de processos.
Regressando a Portugal, constata-se que, por toda a Europa, não se encontra nada de parecido em termos de funções ou, melhor, de poder. Os Ministérios Públicos, ou estão integrados com autonomia funcional nos respetivos poderes judiciais (Espanha, Alemanha), ou inserem-se nos próprios Ministérios da Justiça (Holanda, França, Bélgica, Áustria). A média dos mandatos dos procuradores-gerais nos aludidos países é de quatro anos e não seis, e cessa quando terminam os governos que os propõem. As suas funções são essencialmente penais, não se imiscuindo noutras áreas jurídicas.
No nosso país, há que dizê-lo, o Ministério Público intervém em quase tudo, isto é, intervém em matérias constitucionais, penais, cíveis, comerciais, laborais, administrativas, e de família. A estrutura afigura-se, já se vê, gigantesca, pesada e dispendiosa.
Como facilmente se depreende, depositar tanto poder em apenas um único órgão não beneficia os cidadãos e nem sequer os próprios procuradores, desacreditando a sua autonomia avaliativa e o seu sentido de independência.
A descredibilização imparável das nossas instituições em geral e da justiça em particular tem ocupado dias consecutivos de interrogações, será mesmo que poderemos confiar no Ministério Público, que cometeu três erros fatais? Para quem não conhece esses erros: primeiro, renunciou à recolha de prova indiciária com rigor científico e jurídico, prejudicando a investigação em que estava a trabalhar, o que lhe retirou logo a imparcialidade exigida; segundo, parou, ilegitimamente, a atividade do Governo; terceiro, fez política, não obstante este mal provir de outros inquéritos e de anos passados.
O rombo provocado no casco do navio da execução da política criminal afeta – e muito – o nosso sistema judicial. A brusca manobra do leme, executada pelos Procuradores do Ministério Público, constitui causa suficiente para se reformular o Código do Processo Penal, o Estatuto do Ministério Público e o Código de Conduta dos Magistrados do Ministério Público antes que o sistema de justiça vá a pique.
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