Sim, devemos conhecer os caloteiros dos bancos. E depois?
E quem foram os cúmplices dentro dos bancos? É que os crimes foram feitos por gente bem posta que encontrou formas bem mais seguras, higiénicas e garantidas de assaltar bancos.
Devemos conhecer quem são os maiores devedores que provocaram rombos nas contas dos bancos que tiveram ajudas dos contribuintes? Por princípio, a utilização de dinheiro dos contribuintes deve merecer toda a transparência e informação pública. Não só temos o direito de saber o que é feito com o nosso dinheiro como o Estado tem a obrigação de uma prestação de contas até ao cêntimo. Mas sabemos que no nosso país as zonas obscuras abundam e que a um direito dos cidadãos não corresponde necessariamente o cumprimento da obrigação simétrica pelo Estado.
Sobre o debate que está em curso já vários colunistas escreveram nos últimos dias textos que eu assinaria por baixo: António Costa (A quem interessa proteger o nome dos devedores à banca?) e Vera Gouveia Barros (Só a inocência e a ignorância são felizes), aqui no ECO, e Helena Garrido (Bem vindos ao reino da impunidade) no Observador.
É óbvio que o problema de reputação e de quebra de confiança no sector bancário só tem como responsáveis os gestores bancários que cometeram crimes intencionais ou erros grosseiros de avaliação. É evidente que a supervisão bancária foi lenta, ingénua e perdeu-se em formalismos legais quando do outro lado tinha gente descaradamente fora da lei. E é incontestável que o secretismo sobre as misérias nunca são um bom ponto de partida para mudar o que quer que seja.
Eu ainda sou do tempo em que o Banco de Portugal praticava uma política de absoluta opacidade sobre o que fazia, como fazia e por que fazia. “O Banco de Portugal não comenta assuntos relacionados com a supervisão” foi a frase que eu e todos os colegas jornalistas ouvimos centenas de vezes durante anos a qualquer questão, por mais banal que fosse, relacionada com essa primordial função do banco central.
Esse secretismo não só não evitou as piores desgraças como creio que até as potenciou e ampliou: O crime gosta de recato para tentar passar impune. Claro que isso não significa que se atire o sigilo bancário por inteiro para o lixo. Ele é um bem que deve ser preservado e por isso é que é importante o debate em curso: Em que condições e até onde deve ir a revelação dos protagonistas dos calotes à banca?
Aqui é importante ter cuidado para que não se coloque tudo no mesmo saco, porque nem os bancos são todos iguais nem todos os grandes devedores à banca são criminosos. Pelo contrário, a quase totalidade são grupos e empresários que investem e que arriscam para criar riqueza.
A divulgação deve estar limitada aos bancos que custaram dinheiro aos contribuintes: BPN, BES, Banif e CGD. Dentro destes, deve estar limitada a grandes devedores que, comprovadamente, provocaram perdas irrecuperáveis aos bancos que foram suportadas pelos contribuintes. Ou seja, deve excluir processos de renegociação em curso ou casos em que haja garantias para executar que possam cobrir valores em dívida.
A formulação da lei de 2005 que obriga Autoridade Tributária a divulgar a lista dos maiores devedores individuais e colectivos de impostos pode ser uma aproximação. Ela aplica-se a todos os que “por ter terminado o prazo de pagamento voluntário sem terem cumprido as suas obrigações e, no prazo e termos legais, não tenham prestado garantia ou requerido a sua dispensa, não têm a sua situação tributária regularizada.”
Que mal ao mundo veio desta quebra do também sacrossanto sigilo fiscal na última década?
Aliás, a questão dos grandes devedores aos bancos falidos ou salvos pelos contribuintes já não é segredo há muito. Aqui ao meu lado tenho dois livros sobre a Caixa, escritos pelos jornalistas Diogo Cavaleiro (“Caixa Negra”, da Oficina do Livro) e Helena Garrido (“Quem meteu a mão na Caixa”, da Contraponto) que têm ampla informação sobre isso. Lá estão os casos La Seda, Vale do Lobo, envolvimento na PT ou no assalto ao BCP, Joe Berardo, por exemplo.
E as listas de devedores e calotes do BPN também já são sobejamente conhecidos – alguns envolvem Dias Loureiro e Duarte Lima, lembram-se?
E em relação ao BES também se conhecem os maiores devedores: Ongoing, Grupo Lena, Luís Filipe Vieira, Joe Berardo.
Alguns destes processos já serão irrecuperáveis e outros ainda estarão em fase de renegociações, reescalonamentos de dívida ou execução de garantias e portanto nem deveriam ser elegíveis para a tal lista que está a ser discutida no Parlamento.
Os deputados acordaram tardiamente para o assunto, depois de terem abafado a Comissão de Inquérito aos negócios da Caixa. Assim mostram que estão a fazer coisas e muito preocupados com o assunto.
Mas o essencial terá que acontecer depois disto. Vamos imaginar que amanhã teríamos já a listinha de todos os indivíduos e empresas que ficaram a dever milhões, de forma dada já como irrecuperável, ao BPN, BES, Banif e CGD. O que aconteceria a partir daqui? Confirmava-se o que meio mundo já sabe, agora com maior rigor nos montantes, e mais nada?
Se nada, estamos então perante uma tentativa salutar de transparência mas que não teria consequências. O “public shaming” é importante, sim, porque poderá ter efeitos dissuasores no futuro. Mas não será pouco? É que estamos a falar, em muitos casos, de gente que não só não tem valores nem princípios como também não tem vergonha.
Da lista de envolvidos nos casos que estão ali em cima conseguimos imaginar alguns que se estão “nas tintas” para os danos numa boa reputação que, aliás, nunca tiveram enquanto gozam os milhões que desviaram dos contribuintes através dos bancos.
Se ficarmos apenas pelas mudanças legais que permitam a divulgação dos nomes e respectivos calotes vamos ficar parados a meio do caminho. Pode ser um bom desbloqueador de conversa para um almoço de trabalho – “Então o Duarte Lima lá ficou com 40 milhões de BPN que nós pagámos, hein?”. Mas não chega.
É essencial que se vá lá atrás e se investigue os cúmplices que dentro dos bancos – e sob o rigoroso escrutínio de idoneidade do Banco de Portugal, como se vê – permitiram o saque. Sim, porque não estamos a falar de pilha galinhas que arrombam cofres com explosivos ou assaltam caixas multibanco durante a madrugada. Estamos a falar de gente bem posta, de fatos riscados e nós de gravata perfeitos, que encontrou formas bem mais seguras, higiénicas e garantidas de assaltar bancos: através do acesso às salas de administração.
Como não estamos a falar de unidades de capital de risco ou de bancos de investimento – estas entidades não podem aceitar depósitos e não é por acaso que a lei está feita desta maneira – alguém, nos bancos, não cumpriu as obrigações mínimas de prudência a que estava obrigado. Alguém não exigiu garantias reais quando devia tê-lo feito. Alguém facilitou na avaliação dos projectos de lhe eram apresentados. Alguém foi sensível ao telefonema do governante, do administrador, do “nome influente” para aprovar o crédito.
É obrigatório que a avaliação destes dossiers de crédito seja feita: quem aprovou o quê, em que condições, com que garantias. Até porque, continuando a separar o trigo do joio, também há casos de perdas provocadas pelas mudanças dos mercados, da conjuntura ou porque as melhores análises apontavam para a viabilidade de um negócio que afinal não a tinha. É importante que não se parta do princípio que todos os créditos incobráveis são fruto de crimes, porque isso não é verdade. Daí a importância da análise de cada caso concreto e respectivos protagonistas.
O primeiro interessado nessa avaliação deveria ser o Banco de Portugal. A prudência na guarda dos depósitos – e é sempre isso que está em causa – parte sempre da prudência que se tem na aplicação do dinheiro que os depositantes colocam à guarda dos banqueiros. Ora, banqueiro que permite calotes grosseiros como aqueles de que estamos a falar simplesmente não pode estar em actividade e a idoneidade deve ser-lhe retirada. Falta fazer essa avaliação banco a banco, crédito a crédito e daí tirar as devidas consequências legais e criminais.
Por fim, é preciso alterar as leis necessárias para evitar que continuem a multiplicar-se os casos de “empresários” que enriquecem ou se mantêm ricos depois da falência de negócios que provocaram “buracos” em bancos que os contribuintes pagaram.
Os Nunos Vasconcelos ou Duartes Limas que deixaram rastos de milhões por pagar não podem manter ou aumentar o seu nível de vida depois dos desastres que provocaram. Esta é das mensagens mais perversas que se transmitem à sociedade: os golpes de milhões pagos também por pobres e remediados no IVA deixado na caixa de supermercado ou na bomba de gasolina.
Não sei como isso se faz quando o património já está em nome de filhos e enteados, mas é para isso que servem legisladores competentes, certo? Há propostas também para isto, senhores deputados?
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