Sócrates, mentiras e PPPs
Negócios ruinosos, ganhos excessivos para alguns privados e uma conta de milhares de milhões de euros para os contribuintes. Estão a ver como se arruína um país?
Sócrates e as mentiras
Agustina Bessa Luís tem uma frase que diz mais ou menos isto: “A queda de um homem é sempre mais espetacular que a sua ascensão”. Ora, se a ascensão de José Sócrates foi espetacular, tendo porventura chegado onde nunca pensou chegar, a sua queda está a ser ainda mais dramática. E muito desse dramatismo passa por ver que o PS, o mesmo PS que o elegeu para secretário-geral (e que inclusive após o pedido de resgate da troika o reelegeu com 94% dos votos), veio agora deixá-lo cair com estrondo e sem agravo.
Muito já foi dito sobre a atual atitude dos dirigentes do PS. Saliento em particular o artigo de cinco deputados do PSD (Miguel Morgado, Margarida Balseiro Lopes, Hugo Soares, Duarte Marques e António Leitão Amaro), do Rui Ramos ou do Paulo Ferreira aqui no ECO.
Mas convém reforçar um aspeto: Muitos dos que agora se dizem “envergonhados” com Sócrates, no passado defenderam-no para além do razoável. Passo a explicar: pessoas como o ministro Augusto Santos Silva e o deputado João Galamba não podem vir agora fazer de vítimas (ou como lhes chamou o Alberto Gonçalves, de “lesados do Sócrates”). Não apenas porque politicamente foram coniventes. Porque foram muito mais do que isso. Durante anos participaram numa campanha de encobrimento de todas as suspeitas sobre Sócrates. Durante anos usaram o insulto e a arruaça para atacar aqueles que duvidavam da honestidade do “querido líder”.
Ora, já em 2005 era difícil não ter alguma desconfiança sobre Sócrates. Afinal, já havia o Freeport, o caso da cova da Beira e uma vida de luxo acima dos rendimentos. Mas concedemos que mesmo assim ainda era possível dar o benefício da dúvida.
Mas em 2009 já tínhamos o caso da licenciatura e do famoso Inglês técnico (sem esquecer que no CV de Sócrates aparecia uma pós-graduação que também se veio a descobrir ser um curso rápido de umas poucas horas, que estava também um mestrado no ISCTE que nunca foi concluído e que havia dúvidas sobre os registos no Parlamento), a compra da casa na Braamcamp, com um valor declarado muito abaixo dos restantes apartamentos, a fraude fiscal da empresa que produz os computadores Magalhães, um vídeo sobre o Freeport em que um Inglês diz que Sócrates era corrupto, ou o caso “Face oculta”. E depois havia o caso da TVI e da PT e a tomada de poder no BCP, usando para esse efeito a CGD. Ambos configuraram um plano de controlo do país e das suas instituições, que no limite tornaram-se uma ameaça à liberdade e à democracia. O condicionamento do jornalismo e da Justiça e as ligações perigosas com alguns magistrados.
Em 2009 tinham também o caso das escutas de Belém, em que um governo procurou atacar a Presidência da República, violando correspondência de um jornal. Belém era, como a intervenção do Presidente Cavaco Silva no caso da compra da TVI mostrou, um dos poucos redutos não rendidos a Sócrates.
Convenhamos que era capaz de já ser evidente que Sócrates não era propriamente um tipo sério e honesto. Mas dando ainda o benefício da dúvida em 2009, o que depois se passou em 2011 não merece desculpa. Afinal, depois de ter conduzido Portugal a uma situação de pré-bancarrota, ter em três anos duplicado a dívida pública e poucas semanas depois de chamar a Troika, Sócrates foi reeleito no PS com 94% dos votos. Assim mesmo, à Albanesa (o que se calhar até explica o apoio do ministro Augusto Santos Silva).
Mas depois, em 2014, quando a operação Marques desencadeou a prisão de Sócrates, ficámos a saber de um conjunto de suspeitas. E ficámos também a saber, reconhecido pelo próprio, que um ex-primeiro ministro vivia de empréstimos de um amigo. Amigo esse que tinha feito fortuna através de contratos de obras públicas ganhos no tempo em que Sócrates era Primeiro-ministro. E ganhos numa empresa que antes de 2005 era uma empresa regional, e que passados 6 anos já estava em vários países. Em 2014 também não viram nada?
E desenganem-se os que acham que o caso Sócrates é comparável a outros casos de corrupção. Todos os partidos têm, infelizmente, casos de corrupção. Mas uma coisa é ter um ministro ou secretário de Estado que enriqueceu de forma ilegítima. Outra é isso atingir o primeiro-ministro. E que além de enriquecer procurou controlar o Estado e o País. Essa é a marca de Sócrates: um sistema que permitiu a um medíocre chegar aos lugares mais altos da Nação. O finório sem ofício que alicerçou uma vida nos favores partidários. O talento em sacudir toda e qualquer culpa própria para os outros. A destreza na desculpa pronta. A desculpa risível apresentada como séria e credível. Uma existência de desplante, arrogância, sobranceria e ignorância.
Volto ao meu ponto inicial: Quem durante mais de 10 anos atuou de forma politicamente inaceitável, defendendo Sócrates para além do limite, não se preocupando com a verdade, mas pelo contrário, não tendo pudor em atacar, ofender, insultar e prejudicar quem questionava qualquer episódio que envolvesse o “querido líder”, não pode agora vir simplesmente mostrar “vergonha”. Afinal não era tudo “calúnias, difamações e campanhas negras”.
E a verdade é que Sócrates esteve envolvido em tantos casos que, das duas uma: Ou ele não podia ser inocente em tudo, ou então Sócrates, desafiando a lei das probabilidades, era o tipo mais azarado no mundo!
Por fim, António Costa tem-se refugiado no mantra de “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política”. Não há nenhum jornalista que lhe faça duas perguntas óbvias:
- Politicamente não considera inaceitável que um ex-primeiro ministro viva de empréstimos de um amigo que fez fortuna com contratos públicos?
- Politicamente não acha que aqueles que tiveram no governo de Sócrates devem, por uma questão de ética e de pudor, pedir desculpas aos Portugueses e quem sabe não voltar a ocupar cargos públicos? É que das duas uma: ou se deixaram enganar e não são muito argutos ou então foram coniventes com aquelas aldrabices todas.
Sócrates e as PPPs
A “vergonha” do PS tinha subjacente que novos casos estariam para vir a público, envolvendo outros membros dos governos de Sócrates.
De facto, o nosso sistema político-administrativo tem uma peculiaridade: o primeiro-ministro não tem poder executivo. O poder administrativo está delegado nos ministros (ou nos secretários de Estado) ou então o poder está no Conselho de Ministros. O primeiro-ministro não tem competências administrativas (para além de umas competências menores em termos do seu gabinete). Pelo que a eventual corrupção de Sócrates teve cúmplices (deliberados ou coniventes).
O caso que desde 2012 está a ser investigado sobre as PPPs, e que a semana passada foi notícia abrange duas situações diferentes, mas ambas bastante lesivas para o Estado.
Nas subconcessões (além da irracionalidade económica – dado que a grande parte das autoestradas tem metade dos 12 mil veículos diários que são o benchmark para se construir uma autoestrada – da decisão política de construir aquelas estradas e sobretudo naquele momento de crise mundial, 2007-2009), o que está em causa é que os consórcios que passaram à segunda fase (que em cada PPP se designa por “BAFO- Best and final offer”, e que tem dois concorrentes finais) não podem aumentar o preço que apresentaram na primeira fase. A segunda fase serve para que os candidatos, se o desejaram, melhorem a proposta. Podem melhorar a parte técnica e/ou baixar o preço.
O que sucedeu foi que os concursos foram aprovados contendo um anexo, que não foi entregue ao Tribunal de Contas, e que compensava financeiramente as concessionárias, para além do preço estabelecido. Nos sete projetos essa compensação adicional representava, em valor atual líquido de 2009, cerca de 700 M€.
O segundo caso é o das renegociações das SCUTS. Refira-se que as SCUTS foram um também um negócio ruinoso. Além de que parte daquelas autoestradas não tem racionalidade económica, os contratos foram lesivos do Estado. Neste paper [1] conclui-se que, para igualar o que estamos a pagar aos privados, aqueles sete projetos se tivessem sido construídos pelo Estado, teriam de ter tido uma derrapagem de custos de construção de 100% e teriam de ter o dobro dos custos de manutenção. E refira-se que de acordo com a literatura económica existente, as derrapagens de custos nas empreitadas de obras públicas a nível internacional em projetos de transportes é inferior a 20%.
E para o caso português, este paper [2] chegou a valores também na ordem dos 20%. Sendo que o trabalho que estou a desenvolver com um aluno de doutoramento (ainda não publicado), mas com uma base de dados de quase cinco mil projetos nacionais aponta para valores abaixo dos 10%. Pelo que os contratos originais das SCUTS eram já por si muito lesivos para o Estado. Mas as renegociações de 2010-2011 vieram piorar a situação.
Em 2010-2011, o governo renegociou as sete concessões SCUT, introduzindo portagens. Essa introdução de portagens seguiu o mesmo mecanismo das subconcessões. A portagem é receita da “Estradas de Portugal” e o privado recebe um pagamento fixo por disponibilidade (isto é, desde que a autoestrada esteja aberta, há uma renda fixa). O objetivo deste mecanismo (que é bizarro, pois o que deveria suceder era o privado ficar com as portagens e receber uma compensação adicional, dado o baixo trafego destas estradas) era dar à “Estradas de Portugal” receita mercantil, para que a empresa saísse do perímetro das contas nacionais, e não contasse para o défice e a dívida pública. Esse objetivo não foi alcançado, mas mostra bem como a desorçamentação e a ocultação de dívida pública era central nas políticas dos governos Sócrates.
E aí houve dois aspetos que lesaram o Estado:
- O primeiro teve a ver com o valor pago aos privados para fazer a cobrança de portagens. Cerca de 30% do valor das portagens é para pagar este serviço. Existem indícios que o custo efetivo de cobrar as portagens é bastante inferior, o que significa que uma parte dos 30% é renda adicional dos privados.
- O segundo aspeto, muito mais lesivo, teve a ver com as projeções de tráfego. Em 2010, na maioria das autoestradas, o trafego real estava a metade do caso-base do final dos anos 90. O pagamento ao privado era feito por bandas, pelo que o privado estava a receber menos do que aquilo que o caso-base previa. Com a renegociação o pagamento deixou de ser feito por bandas e passou a ser feito por disponibilidade. Isto reduziu o risco do privado (que deixou de ter o risco procura partilhado com o Estado, passando esse risco totalmente para o lado público).
O que é que se fez? No caso das autoestradas da Ascendi, fizeram-se previsões de tráfego totalmente irrealistas, de forma a que o pagamento por disponibilidade equivalesse ao caso base.
Mas quão irrealistas foram as previsões de tráfego feitas em 2010? O gráfico abaixo, relativo à concessão da Costa da Prata (Ascendi) é retirado de um estudo [3] que fizemos em 2012 no Observatório das PPPs da Católica (saliento que este estudo, juntamente com outra informação foi dada a conhecer a quem de direito logo em 2012).
O que o gráfico mostra é o seguinte: A linha a preto é o tráfego real (que em 2010 estava a metade do caso base inicial). Esse tráfego, em 2011 com a introdução de portagens, caiu cerca de 46% (de 39.500 veículos dia para cerca de 21.500). Contudo, a previsão de tráfego que serviu de base a renegociação e ao pagamento por disponibilidade foi que em 2011 face a 2010, o tráfego cresceria 34%, para 52.700 veículos dia (sim, leu bem, 34% num único ano! Mais 13 mil veículos dia! Um erro de previsão de 60%!).
Ou seja, num contexto de crise e de aumento do preço dos combustíveis, a introdução de um custo (e elevado) em algo que antes era grátis iria provocar um aumento na procura! Refira-se que caso não tivesse sido introduzidas portagens, a nossa linha de tendência (face ao histórico) apontava para que se alcançassem os 52.700 veículos lá para 2014-2015. Sem portagens, a nossa previsão era de 40 mil viaturas dia, portante menos 13 mil que a previsão do governo com portagens!
Mas se mais alguma prova fosse necessária do total absurdo daquela previsão de trafego, bastaria comparar com a previsão, feita na mesma altura e no mesmo contexto, para a SCUT Norte Litoral. Aí, a introdução de portagens levou a uma previsão de quebra do tráfego de 15% (de cerca de 30 mil para cerca de 25 mil veículos dia). O tráfego real caiu 26% (para cerca de 21.800 veículos dia), levando a um erro de previsão de 15%. Aqui a previsão foi próxima do que de fato ocorreu. Qual o motivo que em outras SCUTS isso não sucedeu? Qual o motivo para previsões de tráfego completamente irrealistas?
Em síntese, negócios ruinosos, ganhos excessivos para alguns privados e uma conta de milhares de milhões de euros para os contribuintes. Estão a ver como se arruína um país? Este é o legado político de Sócrates e que o PS continua a defender: Um país falido por projetos como as PPPs, a parque escolar, o Magalhães, entre outros.
[1] Sarmento, J. M. (2010). Do public-private partnerships create value for money for the public sector? The Portuguese experience. OECD Journal on Budgeting, 10(1), 93. Disponível em https://www.oecd.org/portugal/48168959.pdf
[2] Sarmento, J., & Renneboog, L. (2017). Cost overruns in public sector investment projects. Public Works Management & Policy, 22(2), 140-164.
[3] Costa, F. N. (2012). Demand risk in the Portuguese SCUTS and the 2010 renegotiation (Tese de Mestrado- Repositório UCP).
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