Telegrama de Londres

A Herança Imperial de Isabel II é uma espécie de “Ornamentalismo”, um conceito politicamente inócuo, mas culturalmente poderoso e unificador.

A morte da Rainha Isabel II fecha o último dia de um passado e abre o primeiro dia de um futuro. Para além das observações de circunstância e do fascínio cor-de-rosa, a História está toda por fazer. Ainda é demasiado cedo. Para além das especulações ilustradas sobre as tensões familiares e as regras da sucessão, o novo Monarca é uma figura teórica na imaginação das palavras de uma Constituição não escrita. Ainda é demasiado cedo. O paradoxo da continuidade está contido entre um passado que se julga conhecer e um futuro que se imagina conhecer. E este é o fascínio encantado das Monarquias.

Politicamente, do longo reinado de Isabel II destaca-se a ideia de que a Coroa é um dever sagrado, místico, uma Instituição quase metafísica que permite a ligação entre o passado, o presente e o futuro na afirmação da identidade e da unidade da nação. Cada reinado é um capítulo na História da Monarquia, sofrendo e suplantando os acidentes da fortuna para manter o grande romance da nação em linha com o destino e as contingências. A Rainha foi e será a grande narradora deste capítulo, mas não será nunca a autora da última palavra. Cada Monarca é apenas um escritor entre dois capítulos que não controla.

Politicamente, do longo reinado de Isabel II sublinha-se a ideia de que a Coroa é o compromisso temporal entre um “Parlamento Permanente” e uma “Monarquia Eminente”, onde o Soberano reina e os Partidos governam. Esta Monarquia organicamente constituída reúne nesta formulação política expedita as faces de um Reino Unido Conservador e Trabalhista, mítico e funcional, simbólico e constitucional, individual e familiar, nacional e imperial. A figura simbólica da Rainha une internamente e atrai externamente, daí que a morte do Soberano não é apenas a morte de uma Rainha nacional, mas também a morte do símbolo de um Império.

A última Imperatriz não dominou um vasto território colonial, mas ficou a marca indelével no Mundo de um Império que marca a imaginação em termos culturais e imprime uma marca de civilidade e de sofisticação para além de todas as dissidências políticas. O que fica do Império não são as guerras culturais, ou a cultura de exploração, ou o exercício da dominação. A Herança Imperial de Isabel II é uma espécie de “Ornamentalismo”, um conceito politicamente inócuo, mas culturalmente poderoso e unificador. Daí a comoção universal a propósito do desaparecimento da Rainha que, de tanto reinar neste Mundo, se tornou parte integrante do imaginário global contemporâneo.

Sublinhe-se que a Grã-Bretanha é hoje uma nação marcada pela diversidade e pelo multiculturalismo. Basta observar os Ministros do novo Governo Conservador para perceber a vitalidade de uma fábrica social precisamente marcada pela diversidade, pela multiculturalidade, e tal só pode acontecer quando os arranjos políticos conferem toda a prioridade à liberdade e à igualdade de oportunidades. A Grã-Bretanha cumpre finalmente a integração da diversidade no plano interno como se fosse um Império.

No entanto, política e economicamente a Grã-Bretanha nunca foi uma nação tão isolada, uma nação tão próxima da desintegração face à pressão para a independência da Escócia e a pressão para a unificação da Irlanda do Norte. E esta é também uma herança de Isabel II.

Para sublinhar ainda com mais intensidade o isolamento britânico refira-se o Brexit e a realidade de um país que deixou de pertencer à União Europeia, o último e único Império Liberal. De certo modo, o Reino Unido sofre uma profunda crise de identidade política, com uma crise social em crescendo, com um crescimento económico débil, com o aumento da dívida pública, com um conjunto de infraestruturas que não respondem às exigências de um Mundo em contínua aceleração. A ideia de um declínio no concerto das nações está no ar do tempo que se respira. Este é um país com quatro Primeiros-Ministros em seis anos de Governo. Neste cenário, Carlos III será o primeiro Rei da nova era pós-Brexit. E esta é também uma herança de Isabel II.

É pouco conhecido mas, entre 1949 e 1951, a então Princesa Isabel viveu em La Valletta, Malta, na romântica Villa Guardamangia. Na casa abandonada sobe-se uma escada até ao portão de ferro forjado que dá acesso a uma porta verde que se abre para uma sala com paredes de pedra. A moradia está decrépita e caminha-se entre as salas com um ou outro móvel esquecido, sob o olhar de estátuas que se confundem com a pedra das paredes abandonadas pela tinta e pelo tempo. A estátua de uma criança com um leão reclama o nosso olhar, tal como as fortes vigas no tecto alto e o verde imperial que sobra no último terço das paredes um dia brancas. Páginas de uma partitura que não sei ler repousam no chão. Esta é a única casa em que Isabel viveu e que não é um palácio. Em La Valletta, Isabel era a esposa de um oficial de marinha, frequentava o cabeleireiro, tomava banhos de sol, almoçava com as outras esposas na messe da marinha. Na mala tinha sempre dinheiro e do seu tempo apenas 10% era dedicado aos deveres reais. Malhas que o Império tece e só o Tempo desvanece.

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