Teletrabalho e equilíbrio entre a vida profissional e pessoal: solução ou ilusão?

  • João Camilo e David Alvito
  • 17 Setembro 2025

Certo para já é que as empresas devem investir em estruturas eficazes que protejam a saúde mental e que permitam modelos de trabalho flexíveis e sustentáveis.

Numa sociedade dinâmica, em plena transformação, a procura de novos equilíbrios é essencial. A perceção e organização da dimensão temporal tem sido alvo de uma grande transformação – enquanto, no passado, a dimensão temporal assumia carácter homogéneo e contínuo, hoje apresenta-se de maneira inversa, com carácter fragmentado e descontínuo.

O tempo adquire agora – cada vez mais – relevância enquanto variável crítica de gestão, com os ritmos de produtividade a serem ditados pela procura e pela digitalização. Esta mudança levou a um conflito crescente entre as responsabilidades profissionais e a vida pessoal e familiar.

Segundo o relatório “Working Time and Work-Life Balance Around the World”, publicado pela Organização Internacional do Trabalho em 2022, “o número de horas de trabalho, o modo como são organizadas e a disponibilidade de períodos adequados de descanso afetam profundamente não só a qualidade do trabalho, mas também a vida fora do local de trabalho”.

Neste contexto, o relatório destaca que a duração do número de horas de trabalho e a forma como os períodos de trabalho e descanso são organizados têm uma influência profunda na saúde física e mental e no bem-estar dos trabalhadores, na sua segurança, tanto no trabalho como nas deslocações, e nos seus rendimentos.

Em contraponto, o tempo de trabalho desempenha um papel crucial no desempenho, produtividade e competitividade das empresas. Não é por isso surpreendente que as questões relacionadas com o tempo de trabalho estejam no centro da maioria das reformas e evoluções do mercado laboral em curso no mundo.

No que diz respeito à evolução da realidade laboral, assistimos cada vez mais a uma fragmentação do trabalho, tanto a nível espacial como temporal, onde a barreira entre vida profissional e pessoal se esbate. As tecnologias de informação e comunicação potenciam esta tendência ao permitirem a intrusão, por parte do empregador, na vida pessoal do trabalhador, a qualquer momento e em qualquer lugar.

Esta “híper conetividade” levanta preocupações, pois prolonga as horas de trabalho para além dos limites legais e convencionais, afetando as relações pessoais dos trabalhadores e a sua saúde psicológica, mental e física, devido a fatores como a sobrecarga de trabalho, a fadiga e o stress. Ao mesmo tempo, este fenómeno tem também implicações para as empresas, na medida em que aumenta os riscos de “burnout” e queda de produtividade.

De acordo com o “Perfil de Saúde do País”, de 2023 para Portugal, mais de 2,25 milhões de pessoas sofriam de uma perturbação de saúde mental em 2019 – representando 22% da população, valor este muito acima da média da União Europeia (16,7%). As perturbações de ansiedade foram as mais comuns, afetando cerca de 9% da população.

Reconhecida globalmente como uma prioridade fundamental, conforme destacado no “Guidance on mental health policy and strategic actions plans” da Organização Mundial da Saúde para 2025, a saúde mental “é um ativo vital que deve ser protegido e promovido para os indivíduos e as sociedades prosperarem” através de políticas nacionais e ações estratégicas.

Nesta matéria, a nossa Constituição, nos termos das alíneas b) e d), do n.º 1, do artigo 59.º, e da alínea b), do n.º 2 do mesmo artigo, é o ponto de partida para a proteção dos trabalhadores, sobretudo no que concerne à limitação temporal do exercício da atividade laboral, tendo esta preocupação sido transposta para o Código do Trabalho, desde logo para o número 1, do seu artigo 203.º, mas também, por exemplo, nos artigos 213.º, n.º 1, 214.º, 230.º, n.º 1, 232.º, n.º 1 e 237.º, todos do mesmo código.

No entanto, embora o regime legal português tradicionalmente assegure a proteção dos trabalhadores, especialmente no que diz respeito aos limites de tempo de trabalho, a atividade laboral é cada vez mais moldada pela digitalização e por uma estrutura colaborativa, sobretudo através da participação em equipas e projetos internacionais que abrangem múltiplos fusos horários.

Esta nova realidade traz desafios adicionais. Apesar de, do ponto de vista legal, nada impedir o trabalhador de cessar a sua disponibilidade findo o seu período normal de trabalho, a mentalidade cultural – como a ideia de que um “bom” trabalhador está sempre disponível – e a crescente competitividade no mercado de trabalho continuam a ser uma barreia significativa à verdadeira desconexão.

Neste contexto, urgem novas abordagens que permitam uma melhor conciliação entre a vida privada e profissional.

Fruto da pandemia e por força da sua utilização generalizada como instrumento de combate à crise da Covid-19, o teletrabalho emergiu como uma ferramenta de flexibilização laboral que garante uma maior autonomia de atuação por parte dos trabalhadores, oferecendo também potencial para um melhor equilíbrio entre a vida profissional e pessoal.

Em Portugal, o teletrabalho cresceu significativamente nos últimos 3 anos. Segundo os dados divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), aproximadamente 20,9% da população ativa no primeiro trimestre de 2025 trabalhou em regime de teletrabalho, o dobro da percentagem registada em 2022.

Contudo, embora esta modalidade de trabalho tenha potencial para ajudar a resolver o problema acima identificado, também acarreta certos desafios e pode, em última análise, revelar-se prejudicial. De facto, dado que os trabalhadores estão a trabalhar remotamente – muitas vezes a partir de casa – isso pode levá-los a trabalhar mais horas e a ter mais dificuldade em se desconectar.

Neste contexto, a intervenção legislativa tem procurado reformar o regime (inovador) introduzido pelo Código do Trabalho de 2003, adaptando-o às exigências do mundo “pós-pandemia”, introduzindo medidas que procuram garantir um justo equilíbrio entre as necessidades empresariais e a proteção dos trabalhadores.

A este respeito, destacamos o preceito introduzido pela Lei n.º 83/2021, de 6 de dezembro (artigo 199.º – A) através do qual se consignou a obrigação de, em regra, o empregador não interpelar o trabalhador por motivos profissionais durante o seu tempo de não trabalho – vulgarmente designado “direito à desconexão”.

Porventura consciente da acuidade do tema e das dificuldades sentidas pelos trabalhadores em regime remoto a conseguir uma efetiva desconexão, veio recentemente a Autoridade para as Condições do Trabalho emitir parecer (não vinculativo) quanto a esta matéria, conferindo significativa amplitude ao dever de abstenção por parte do empregador, salientando que apenas em situações críticas / urgentes o trabalhador pode ser contactado pelo empregador e que, mesmo que não seja exigida uma resposta imediata por parte do mesmo, o simples facto de este ser contactado fora do seu horário de trabalho constitui uma violação do direito à desconexão. Ademais, afirmou a Autoridade para as Condições do Trabalho, de forma clara, que a violação deste dever de abstenção de contacto pode ser relevante num contexto mais amplo de assédio moral.

Constatamos assim que este é um tema que ainda se encontra em efervescência e que, claramente, demonstra que uma solução duradoura depende não apenas de uma reforma legal, mas também de uma mudança cultural e de políticas organizacionais eficazes. Certo para já é que as empresas devem investir em estruturas eficazes que protejam a saúde mental e que permitam modelos de trabalho flexíveis e sustentáveis – porque, em última instância, o tempo de trabalho não é apenas uma questão jurídica ou empresarial, mas uma questão de dignidade humana.

  • João Camilo
  • Associado sénior do dpartamento Laboral e Pensões da Eversheds Sutherland
  • David Alvito
  • Associado do departamento Laboral e Pensões da Eversheds Sutherland

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