“The left wing and the right wing belong to the same bird”

  • Paulo Saragoça da Matta
  • 24 Outubro 2019

Ou de como os populismos destruirão a democracia, sejam de que banda forem!

Naquilo que nos habituámos a chamar de democracias ocidentais, onde os Direitos Humanos básicos vão sendo por regra genericamente cumpridos, vivemos ainda descansada e despreocupadamente, hoje como nos finais do século XX.

Não imaginamos, ou nem temos tempo para imaginar, que o nosso european lifestyle possa diariamente estar a ser posto em perigo, mesmo debaixo dos nossos olhos, ante a passividade geral. E esta alienação generalizada afeta a quase totalidade das populações. Desde aqueles que totalmente se demitiram de participar na vida comum, até aqueles que, preocupando-se pelos mínimos exigíveis, têm as dificuldades da sua sobrevivência a ocupar-lhes a maior parte do pensamento, passando por todos os que, sendo até “oficialmente” cidadãos politicamente atentos, na verdade não conseguem ganhar a distância suficiente (dos vários preconceitos que os limitam), para ver aquilo em que a realidade das democracias ocidentais se está a transformar. E uns e outros vão vivendo o dia-a-dia sem verdadeiramente pensar.

Noutro patamar de reflexão estão técnicos como Shawn Rosenberg, que no encontro anual da International Society of Political Psychologists, realizado em Lisboa no verão passado, afirmou que “democracy is devouring itself and it won’t last”. Este consagrado psicólogo político disse, e com toda a propriedade, que a “democracia dá muito trabalho!”. E dá realmente.

Partiu o autor, na sua apresentação, da assunção de que as elites (sejam peritos, figuras públicas que norteiam a coletividade a navegar as pesadas responsabilidades envolvidas com a democracia), foram sendo postas de parte, e que os cidadãos provaram estar cognitiva e emocionalmente mal preparados para operar uma democracia a funcionar corretamente. Consequentemente, o centro político colapsou, e milhões de eleitores frustrados e angustiados se viraram em desespero para os populismos de direita.

E terá razão Rosenberg? Modestamente pensamos que tem muita, mas não a tem toda. Falhará, apenas, quando com um olhar excessivamente “norte-americano” vê a democracia vergar-se aos populismos de “extrema direita”, esquecendo que há mais política, e democracias, para além do aquário esférico em que parece viver a maior parte dos cidadãos, ainda que académicos conceituados, dos EUA. Seria caso para dizer que há mais experiências empíricas no mundo para analisar, do que as que se digladiam entre a Casa Branca, o Supremo Tribunal Federal e o Congresso dos EUA.

Preocupados com os afazeres do quotidiano, desde as tarefas domésticas, à educação dos filhos, da realização maquinal das obrigações laborais a que nos subjugamos para garantir a subsistência, à conflitualidade sócio-económica, étnica e política, com que nos deparamos em toda a parte, pouco tempo, e ciência, nos sobram para ter uma visão global e real do perigo que se aproxima.

São certamente ilustrativos do pensamento de Rosenberg os assomos populistas de direita extrema surgidos na Polónia, na Hungria, no Brasil e até nos EUA. E talvez não falhe também na previsão de que nas próximas décadas os Estados Democráticos reais venham a reduzir-se cada vez mais.

Mas a democracia não é ameaçada apenas pelos populismos de extrema-direita, como diz. Bem ao invés. Pegando precisamente no seu pensamento, segundo o qual a democracia exige imenso a todos os que nela participam, pedindo que as pessoas respeitem todos quantos tenham visões do mundo diferentes das suas, ou que tenham aspetos, convicções e crenças diversas das suas, não pode esquecer-se que também os extremismos de esquerda têm para se desenvolver o mesmo solo fértil que qualquer outro extremismo.

Diríamos, com atrevimento (pois enquanto o que aqui escreve é um comum cidadão de um pequeno País, e o eminente Autor que se aprecia é um académico com graus de Harvard, Yale e Oxford), que Rosenberg acabou por ser “apanhado” pelas mesmas teias de preconceito que conseguiu detetar para vaticinar o perigoso crescimento das extremas direitas. Expliquemo-nos melhor.

O pensamento de Rosenberg, tão bem explanado por Shenkman no texto citado, é o de que a democracia “exige aos cidadãos que sejam capazes de processar largas quantidades de informação, separando o bom do mau, o verdadeiro do falso. Exige consideração, disciplina e lógica. Infelizmente, a evolução não favoreceu o exercício dessas qualidades no contexto das modernas democracias de massas”.

Mas mais: afirma que “quando as pessoas são deixadas a tomar decisões políticas por si mesmas, guinam em direção a soluções simples que os populistas de extrema direita oferecem por todo o mundo: uma mistura mortífera de xenofobia, racismo e autoritarismo”. E tudo isto porque as elites, que tinham por função controlar os assomos antidemocráticos da população, perderam importância, sendo hoje generalizadamente desconsiderados.

Ora, a construção de Rosenberg falha, precisamente, ao esquecer que os populismos são todos iguais, sejam de extrema direita ou de extrema esquerda. A receita para cozinhar um regime extremista de direita é a mesma a usar para confecionar uma solução de extrema esquerda.

O terreno fértil para o populismo é sempre o mesmo: um inimigo comum, muita informação falsa, muita propaganda dirigida à manipulação do pensamento e até das consciências.

E é a mesma sociedade do excesso de informação, a maior parte dela falsa, massificadamente transmitida em redes sociais totalmente descontroladas, que leva as pessoas a preferir as tais soluções simples dos populistas, do bem e do mal, tal qual apresentado por quem as quer dominar. Tudo depende, portanto, de saber quem ganha a batalha da alienação das consciências.

É sabido, há milénios, que o melhor modo de dominar é através da ignorância. E descobrimos agora que a melhor forma de garantir ignorância, não é limitar a informação, mas inundar os eleitores com o máximo de informação possível. Quanto mais falsa e deturpada, de acordo com os programas político-partidários a implementar, melhor. Assim se gera a aparência da democracia, da liberdade de expressão, de opinião e de pensamento, faz-se crer as sociedades que são livres para decidir, que decidem, que têm as rédeas das vidas nas mãos, quando as não têm, pois toda a decisão tomada sob pressupostos errados, só pode ser igualmente errada.

Imaginar que os valores, os princípios, as regras, os mecanismos e instituições democráticos são interiorizados, conhecidos e dominados por todos e cada um dos eleitores, é mais do que uma ficção. É uma mentira. É, apenas, digamo-lo sem peias, uma construção de dominação. Talvez a melhor de sempre. Mas ainda assim uma construção de dominação.

E tal construção de esquema de dominação serviu para manter o equilíbrio social que os Estados de Direito Democrático construíram, para se legitimarem. Mas quando o fizeram, os fundadores da Democracia Ocidental Moderna nunca admitiram ou imaginaram possível prescindir da barreira à “ignorância geral” que era constituída pelas castas ou elites de que precisamente fala Rosenberg. Que serviam para orientar as populações nas escolhas e pensamentos. Um opinion maker não é mais do que uma peça dessa máquina de dominação. E nesta afirmação não há nenhuma hipocrisia, nem cinismo.

O problema que gera a crise do Estado de Direito Democrático, tem razão Rosenberg, foi a queda desamparada das elites formadas por aqueles a quem incumbia manter os eleitores esclarecidos sobre a importância dos valores democráticos. Com os social media, a tecnologia, as redes sociais, esse poder das elites caiu na rua, descontrolado, e qualquer celerado, com um simples smartphone, cria um blogue, uma conta de twitter, uma página de facebook, uma conta de instagram, para difundir seja que ideias forem – por maior que seja o dislate que as suporte. Das mais inócuas, porque vanity fair, às mais perigosas, porque ao serviço de programas populistas de arrebanhamento de seguidores para novos sistemas de valores. Hoje tudo pode ser construído e destruído sem qualquer dificuldade, em instantes.

E todo esse mundo de falsidade, mentira, calúnia, é incontrolável – por mais “fake news checkers” que existam, no momento em que o embuste possa ser desmascarado, já provocou danos suficientes para serem irreversíveis, já doutrinou dezenas de milhares.

E o que é pior: a estrutura orgânica do Estado Democrático não só não tem instrumentos nem velocidade para impedir essas ameaças à própria existência do Regime instituído (cfr. a inoperância da Justiça no que respeita ao cibercrime e aos crimes informáticos), como muitos daqueles que ocupam ou desejam ocupar a dita estrutura orgânica do poder, não se coíbem de utilizar essas mesmas vias ilícitas. Como dizia alguém, “na guerra e na política, vale tudo!”. Logo, que força política extremista, sedenta de ascender ao poder, terá rebuço em lançar mão de tão eficaz método.

Se é certo que foi mais democracia o que se pretendeu com as redes sociais e a maior velocidade da circulação da informação, não menos certo é que foram estas mesmas redes sociais que começaram o processo de minagem daquela democracia que as permitiu existir, e que acabarão por conduzir-nos a todo o tipo de regimes autoritários.

Logo, tem muita razão Rosenberg. Mas só viu metade do quadro. É que nada indicia, muito menos provando, que só regimes populistas de extrema-direita nascerão desta endofágica destruição da democracia: bem ao invés! É que se neste novo mundo virtual o politicamente correto deixou de ser uma barreira. “Se cada um pode dizer exatamente o que sente quanto a pessoas que pertençam a outras tribos”, muito rapidamente podem nascer e prosperar populismos de qualquer cor.

Ademais, parece Rosenberg esquecer que todo e qualquer populista tem que ter na base a indicação de um inimigo a quem culpar pelos seus sentimentos de tédio, frustração, desagrado, angústia, pobreza ou inveja. Logo, se os populistas de extrema direita podem encontrar o inimigo no diferente por ser estrangeiro, por ser mulher, por ser gay, negro ou cigano; também os populistas de extrema esquerda podem fixar o inimigo comum no outro por ser rico, ter mais acesso, ter outro grau de educação ou de ambiente sócio-económico.

Aliás, se existem exemplos de desvios populistas de extrema direita, também os há, ainda hoje em dia, de extrema esquerda. E se os terrenos férteis para o populismo são criados, precisamente, pela tecnologia deste admirável mundo novo, estranho seria que só uma ala da política conseguisse usar dessas novas alfaias para fazer política. Só mesmo quem nenhuma experiência de facto tenha do que é viver num regime ditatorial de esquerda, pode imaginar que populismos de extrema esquerda são impossíveis de surgir neste momento de degringolade da velha democracia ao estilo ocidental.

E foi a este respeito que me lembrei da velha frase: “the left wing and the right wing belong to the same bird”.

*Paulo Saragoça da Matt, sócio fundador da sociedade de advogados Saragoça da Matta & Silveiro de Barros.

  • Paulo Saragoça da Matta
  • Sócio da DLA Piper

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