Trabalhar sem empregos: Quando o futuro já não cabe nas empresas do passado

A IA não destrói o futuro do trabalho. Destrói as empresas, os gestores e os países que se recusam a mudar.

A explosão da inteligência artificial nos mercados de capitais é mais do que uma onda tecnológica. É uma reconfiguração silenciosa do próprio sistema económico. As valorizações que hoje se observam nas empresas ligadas à IA não traduzem apenas inovação ou entusiasmo financeiro. Refletem a perceção de que entrámos numa nova etapa do capitalismo, em que o trabalho, o capital e o consumo estão a ser redesenhados de forma estrutural. A questão essencial já não é somente determinar quantos empregos a IA vai eliminar, mas essencialmente perceber como as empresas e as pessoas vão reinventar o trabalho.

Ravin Jesuthasan e John W. Boudreau, no livro “Work Without Jobs”, escrito em 2023 e que acabei de ler agora, antecipam esta transformação com clareza. Jesuthasan que esteve no QSP Summit de 2024, defende que as organizações devem abandonar o emprego como unidade central de gestão e passar a pensar o trabalho em termos de tarefas, competências e missões. Nesta aceção, o trabalhador deixa de ser definido pelo cargo e passa a ser reconhecido pelas suas capacidades, pelas aprendizagens e pela sua contribuição em projetos dinâmicos. O resultado é uma empresa que se comporta como um ecossistema vivo, onde o talento flui conforme as necessidades de mercado e onde a tecnologia é parceira e não substituta.

A abrupta emergência da inteligência artificial acelera este modelo, sendo que o capital financeiro distingue cada vez mais entre empresas estáticas, que continuam a operar segundo hierarquias rígidas, e empresas reconfiguráveis, aquelas capazes de combinar pessoas e algoritmos com agilidade. As primeiras perderão valor. As segundas transformarão essa flexibilidade em crescimento e, portanto, em múltiplos de mercado mais altos. Deste modo, a diferença não está na adoção da tecnologia, mas na capacidade de reorganizar o trabalho à velocidade em que a tecnologia evolui.

O impacto da IA no emprego será contudo e de forma clara assimétrico. As tarefas rotineiras e intermediárias tendem a desaparecer, enquanto surgem novas funções em design digital, engenharia de dados, governação de IA e integração entre homem e máquina. O emprego tradicional, estável e previsível, cede espaço a um portefólio de competências, experiências e projetos. A segurança passará a depender menos da função e mais da capacidade de aprender, adaptar e colaborar.

Do ponto de vista geopolítico, a inteligência artificial é hoje o epicentro da disputa entre China, Estados Unidos e Europa. A China aposta na integração vertical entre dados, indústria e Estado, transformando a IA em instrumento de planeamento económico e controlo social. Os Estados Unidos seguem o caminho da liderança privada, onde gigantes tecnológicos moldam o ritmo da inovação global com o apoio do capital de risco. Já a Europa, presa entre a necessidade de competir e o imperativo ético de regular, arrisca perder relevância se não transformar a sua prudência em estratégia. O eixo da IA é, portanto, mais do que uma corrida tecnológica: é um novo tabuleiro de poder que definirá quem controla o valor, a segurança e a soberania digital nas próximas décadas.

Mas a transformação que derivará da expansão da IA vai para além do seu marcado impacto no mercado de trabalho. A IA reabre também o debate sobre a repartição entre trabalho e capital na distribuição dos rendimentos do produto gerado. Sabemos que a produtividade pode crescer, os custos descerem e o consumo pode ser estimulado. Contudo, se os ganhos forem apropriados apenas por quem controla o capital tecnológico e os dados, a desigualdade aumentará e a procura agregada acabará então por enfraquecer o crescimento económico, para além de acentuar níveis de desigualdade que podem pôr em causas as fundações das sociedades liberais. Corremos, pois, o risco de a economia colapsar, não por falta de tecnologia, mas por falhas na distribuição inteligente do seu valor.

As respostas não passam, contudo, por travar a IA, mas por a enquadrar. Empresas que transformem eficiência em valor partilhado (com remunerações ligadas a resultados sustentáveis, participação nos lucros e investimento em competências) serão as novas líderes. As políticas públicas devem também garantir que o progresso tecnológico não é um privilégio, mas uma plataforma de mobilidade. Em vez de taxar máquinas, importa financiar a aprendizagem contínua e proteger as transições de profissões para tarefas, projetos e colaborações.

Neste livro arrebatador, os autores alertam assim que o maior risco não é o desemprego, é a inércia. Continuar a gerir pessoas com estruturas do século passado é condenar as organizações a perder relevância. Trabalho sem empregos não é precariedade; é a evolução natural de uma economia baseada em capacidades, redes e resultados. O desafio é cultural antes de ser tecnológico.

O que está em causa não é apenas a próxima vaga de inovação, mas o próprio contrato social da economia moderna. A IA não destrói o futuro do trabalho. Destrói as empresas, os gestores e os países que se recusam a mudar. A questão é simples: queremos ser os donos desta transformação ou as suas vítimas silenciosas?

  • Colunista convidado. Economista e professor na FEP e na PBS

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