Terá a América a coragem de repensar o Governo e o seu lugar no mundo? Este seria sim o fim de uma época e o início de uma nova era.

Se o planeta fosse um país, as eleições na América seriam o momento planetário da democracia global. Mas apesar da atenção e do fascínio planetários, a América vota fechada sobre si mesma e vota como se os limites do planeta civilizado coincidissem com as fronteiras da América. A nação indispensável é afinal o território da suprema soberania.

Se o mundo conseguir organizar-se em torno do soberano supremo, eis a contribuição do planeta América para a prosperidade global. Se a constelação de estados soberanos dependentes não consegue entender sequer o sentido e a direcção do Destino Manifesto, então a América assume a sua natureza política única, exclusiva, superior, gloriosa. O Império que não quer ser um Império não quer ser outra coisa senão a luz do progresso num mundo das trevas. Mesmo que as trevas sejam parte integrante de uma América profunda, rural, miserável, pobre em cada condado, uma América que viaja nos vapores do Fentanil e que sonha com McDonald’s a 1 dólar. Sob a atenção do mundo, a América vota sozinha de acordo com o interesse próprio bem ou mal dirigido. Convém relembrar que os americanos são de Marte.

Podem encontrar-se mil justificações para a vitória de Trump. Podem encontrar-se mil justificações para a derrota de Harris. Mas o que está em causa não é o episódio burlesco que marca a sondagem do dia. Uma correlação não implica uma causalidade. E as causas da América são demasiado voláteis e volúveis para se adivinharem em modelos estatísticos tendenciosos. Para além do facto dos americanos mentirem às sondagens. A realidade da América é uma longa e silenciosa acumulação de transformações invisíveis do exterior, mas persistentes no tempo da sociedade e da política até explodirem num resultado eleitoral surpreendente mas inscrito na fábrica da nação. Algo se passa na América quando uma loja de conveniência só vende o Washington Post, vários jornais locais em língua espanhola e subitamente a Hola!

A América de hoje não é a degradação do liberalismo, não é a ascensão do populismo, não é o delírio de uma cultura woke, não é a pulsão isolacionista nem a tentação internacionalista, não é o espectro da imigração, não é o unilateralismo nem o multilateralismo. A América é uma máquina cultural de criar mitos e sonhos. E os mitos e sonhos são o maior património da nação excepcional que se contempla ao espelho como o habitat natural das oportunidades. A América é a terra dos bravos e a terra dos livres. A América é a terra onde as porn stars têm nomes que parecem nomes de motéis nas grandes circulares de Los Angeles. A América é o território de uma cintura em que a Bíblia é a estrada para a vida. A América é a zona onde só cresce a ferrugem de uma era industrial passada e recordada com nostalgia e alcoolismo. A América é o colarinho azul na elegia de um hillbilly. A América é uma Babel complexa em que tudo e o seu contrário convivem num deserto do Arizona ou na 5ª Avenida de New York. A América é uma Disney Land onde tudo é possível até ao limite do impossível.

Os americanos votaram numa certa ideia da América – uma América recuperada na sua planetária dimensão industrial, maioritariamente próspera, exclusivamente dominante na cena internacional como garantia para a prosperidade nacional. A América não se vai retirar do mundo – a marinha continuará a navegar em oceano aberto, os F35 continuarão a riscar os céus com as nuvens de um jacto a marcar a presença americana. A “nova ordem dos séculos” servirá agora o interesse particular dos americanos, onde a liberdade individual de uma oligarquia interna surge estranhamente associada a uma estranha luta de classes. O Presidente Trump é agora o rosto do “white trash” e do magnata de Silicon Valley. A nova era na América será a de uma nação que se confunde com uma multinacional em busca da maximização do lucro por todos os meios possíveis e imaginários.

Sobra uma questão incómoda. Qual a atitude da nova Administração face à sacralidade da Constituição? Se o Presidente Trump desejar de facto inscrever o seu nome na História da América, concretizando o tal “realinhamento histórico do senso comum”, tal implica a coragem de evocar o Artigo 5 da Constituição e solicitar o convénio de uma Convenção Constitucional. Os Pais Fundadores não trataram a Constituição como um documento político perfeito nem definitivo.

Thomas Jefferson defendia a realização de uma Convenção Constitucional uma vez em cada geração. Para os defensores da América eterna, esta hipótese, embora democrática, é vista precisamente como uma certa morte do sonho americano. A América está hoje confrontada com a fúria de toda uma classe que se viu e que se vê privada de uma vida decente. Não são necessários poderes proféticos para afirmar que a apatia não será eterna. A alternativa será certamente a gestão do declínio ou uma certa anarquia. Terá a América a coragem de repensar o Governo e o seu lugar no mundo? Este seria sim o fim de uma época e o início de uma nova era.

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