Um orçamento de enganos e dúvidas
Este é um OE na linha dos últimos quatro anos: Não olha para o futuro, apenas para o imediato, para as próximas eleições. Só cuida de distribuir as folgas pelas reivindicações do PCP e BE,
Há uma semana, após a entrega pelo governo do OE/2019, tive a oportunidade de fazer uma primeira análise. Entretanto, muitos outros também já se pronunciaram. Passada uma semana é possível constatar que a maioria entende que o OE/19 não tem uma visão de estratégia, é eleitoralista e tem vários enganos e dúvidas.
Comecemos pela análise mais importante, que é a da Comissão Europeia. As regras Europeias obrigam a que cada governo, até 15 de outubro, envie o “draft of budgetary plan”, ou seja, um esboço do OE que apresenta no respetivo Parlamento nacional. A Comissão já respondeu. E foi bastante crítica com o OE/19.
Isto porque o ajustamento estrutural será, na melhor das hipóteses, de 0.2 pontos percentuais (p.p.) do PIB (sendo que Portugal deveria cumprir um ajustamento de 0.6 p.p.). Este ajustamento anual de 0.6 resulta do facto de Portugal ainda não ter atingido um OE equilibrado do ponto de vista estrutural. O equilíbrio para 2019 é nominal e baseia-se, como tenho insistido, numa conjuntura favorável e em fatores temporários (redução da despesa com juros e aumento dividendos e IRC do Banco de Portugal valem metade da consolidação nominal). Além de que a despesa corrente primária, seguindo as regras europeias, só deveria crescer 0.7% e vai crescer 3.4%.
Recorde-se que um país que ainda não atingiu o Objetivo de Médio Prazo (que para Portugal, dado que a sua dívida pública é muito elevada, é de um excedente estrutural de 0.25% e não de um défice estrutural de 0.5%), deve cumprir as seguintes regras relativas à despesa:
- O crescimento da despesa primária abaixo da taxa média de crescimento potencial do PIB e a despesa em percentagem do PIB diminui, na ausência de medidas adicionais do lado da receita. Ora, o PIB cresce nominalmente 3.6% e a despesa cresce 3.4%. Só aparentemente cumpre a primeira regra, dado que a fórmula de cálculo da variação da despesa aponta para um valor de 0.7%
Em ano eleitoral, o governo volta a não cumprir as regras europeias, mas agora com uma diferença maior que nos anos anteriores. Há que gastar na senda de conquistar votos. Acho que como estratégia eleitoral não vai funcionar, mas posso estar equivocado.
Olhando para o documento que Portugal submeteu, há um aspeto que continua a não ser explicado, nem pelo governo, nem pela Comissão. O défice estrutural, que em 2015 era de 2.2% PIB, manteve-se em 2% em 2016. As medidas de aumento de despesa e redução da receita (nomeadamente a reposição dos cortes do tempo do Sócrates e a redução da sobretaxa) foram compensados por aumentos nos impostos indiretos. Depois, houve em 2016 uma forte redução do investimento público (passou de 2.3% PIB para 1.5%) e um aumento das cativações nos gastos com os serviços públicos.
Durante o ano de 2017, a estratégia orçamental do Doutor Centeno manteve-se igual. Continuou a aumentar os impostos indiretos para compensar algumas benesses diretas e manteve o investimento público em mínimos históricos (1.7% PIB, sendo que o aumento face a 2016 resultou de mais 400 M€ de investimento das autarquias – foi ano de eleições autárquicas).
Assim, quando o governo apresentou o OE/2018 (outubro de 2017), o défice estrutural para 2017 era de 2%, ou seja, pouco se tinha reduzido face ao valor de 2015. Mas, de repente, quando o governo apresentou o programa de estabilidade (PE) em abril de 2018, o défice estrutural de 2017 tinha baixado para 1.1% (uma redução de 0.9 p.p.). Na altura, o PE apresentava apenas o valor de 2017. Julguei então que seria uma revisão da série do PIB potencial. Que tinham revisto os últimos 4-5 anos, e que o PIB potencial tinha aumentado e que o défice estrutural se tinha reduzido nos últimos 4-5 anos face a este efeito. E que em termos acumulados, representaria em 2017 um efeito de 0.9 p.p.. Assim, faria sentido. Uma melhoria gradual ao longo de vários anos, beneficiando das reformas estruturais feitas nos últimos anos. Só que não foi nada disso que sucedeu no papel.
Recorde-se que quanto maior for o PIB potencial, maior é a diferença face ao PIB real (o hiato do produto). Se essa diferença for positiva, e pegando no défice nominal, temos um défice estrutural mais baixo. Isto porque se o PIB real fosse igual ao PIB potencial, haveria mais receitas fiscais e menos desemprego, reduzindo o défice.
Sucede que não foi nada disso. A série para trás não foi revista. Apenas se reviu o PIB potencial de 2017. O que nunca foi explicado até hoje é o que ocorreu na economia portuguesa de 2016 para 2017 que levou a um aumento tão significativo do PIB potencial que justifica menos 0.9 de défice estrutural?
Ora, esse efeito continua em 2018 e 2019. Olhando para os números do Governo, o hiato do produto volta a aumentar de 2018 para 2019. Ou seja, o PIB potencial continua a crescer. Mas como é tal possível se, por um lado, o investimento continua muito baixo? E, por outro, como pode o PIB potencial crescer se a produtividade tem caído?
Assim, é difícil acreditar nos números que são apresentados pelo Governo. De facto, se descontarmos parte deste aumento do PIB potencial, e se não consideramos a redução da despesa com juros (0.7 p.p. PIB entre 2015 e 2019), que é temporária, e não considerarmos o efeito do Banco de Portugal (0.4 p.p.), que é também temporário, o défice estrutural em 2019 é na realidade muito mais alto do que aquilo que o Governo apresenta. O défice estrutural não é de 0.3%. Está seguramente acima de 1% (basta somar as duas medidas temporárias aos 0.3% para chegar a 1%). E como o efeito do PIB potencial permanece em grande medida por explicar, arriscaria até dizer que o défice estrutural anda próximo dos 2%. Algo que será visível, se nada for feito até lá, na próxima crise.
Mas este OE/19 tem outros enganos e dúvidas.
O primeiro é que, como tenho desde 2016 referido, é muito difícil avaliar uma proposta de OE deste governo. Aquilo que colocam no papel depois dificilmente tem aderência à realidade. Aliás, no excel do Doutor Centeno provavelmente há apenas 4 premissas:
- A carga fiscal tem de parecer que baixa (mesmo que depois suba).
- O investimento público tem um crescimento elevado face à deceção que foi a execução do ano anterior (mas depois continua a não executar).
- Tem de haver uns pequenos aumentos nas prestações sociais.
- O défice estrutural tem de se reduzir face ao ano anterior, mesmo que as medidas em termos líquidos não tenham impacto. Basta modelar o PIB potencial, como atrás referi.
Em 2016 e 2017, a despesa primária executada foi cerca de dois mil M€ (1% do PIB) inferior à orçamentada, pelo que os valores da despesa não são credíveis. Basta ver, como tem sido referido, a execução do investimento face ao planeado. O OE/2016 tinha um investimento de 3.7 mil M€ e o executado foi de 2.9 mil M€. Em 2017, o orçamentado foi de 4.2 mil M€ e o executado foi de 3.5 mil M€. Em 2018, o orçamentado foi de 4.6 mil M€ e o previsto é de 4.1 mil M€.
Basta pensar o seguinte: Se o Governo das esquerdas tivesse mantido o nível de investimento público durante estes 4 anos (2016-2019) igual ao de 2015 (que foi de 2.3% PIB), isso representaria, ao longo da legislatura, mais 3.7 mil milhões de euros de investimento executado. Muitos dos graves problemas que afetam a Saúde, os Transportes, a Educação, a Segurança poderiam ter sido mitigados.
Depois, temos a questão do crescimento económico. O Conselho de Finanças Públicas já deixou o alerta: “Desta forma, contrariamente ao disposto na lei de enquadramento orçamental, o cenário macroeconómico subjacente à proposta de lei de Orçamento do Estado para 2019 não pode ser considerado como o cenário mais provável ou um cenário mais prudente”.
Olhando para as áreas setoriais, o primeiro engano aparece na Educação (Ensino Básico e Secundário e Administração Escolar). A despesa total efetiva aumenta 20 M€! Sim, passa de 6.285 M€ para 6.304 M€. O texto do relatório (pg 149) fala em outros números, que são desmentidos pela própria tabela da mesma página! Nem na mesma página este OE consegue ser coerente e sério. Tendo em conta que a despesa no setor da Educação é quase 90% salários, como é que haverá aumentos e descongelamento das carreiras com mais 20 M€ (um aumento de 0.3%, quando as despesas com pessoal é previsto aumentarem cerca de 3%)?
Outro aspeto prende-se com a área da Saúde. Tem sido a que mais tem sofrido com as irresponsáveis decisões do Governo, sobretudo com a decisão de passar das 40h para as 35h. Apesar do aumento do número de enfermeiros entre 2016 e 2018, temos hoje menos horas de trabalho por via desta redução. Mas quando olhamos para o OE/19, percebemos que o setor da Saúde volta a estar fora das prioridades do governo. As transferências para o SNS aumentam 200 M€. Isto é um aumento de 2.3%, quando a despesa primária sobre 3.1%. Portanto, no bolo total, a saúde vai valer menos em 2019. Em termos reais, descontada a inflação e os aumentos com pessoal, temos que a despesa aumenta 0.3%. É muito “poucochinho”. Mas em ano de eleições, os serviços do SNS não são uma prioridade.
Este é um OE na linha dos últimos quatro anos: Não olha para o futuro, apenas para o imediato, para as próximas eleições. Só cuida de distribuir as folgas pelas reivindicações do PCP e BE, sem uma linha de rumo estratégica, nem uma visão de conjunto. O critério é a simpatia imediata e vender uma imagem de que a governação é tão boa que permite um largo conjunto de benesses. Deita fora a oportunidade que a conjuntura económica nos tem oferecido.
Como tenho aqui escrito: “feliz o país que em tempos de alguma bonança económica pensa na próxima crise”
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