Uma história sobre o corte da despesa
A consolidação orçamental depende do corte da despesa primária, isto é, sem juros, e são necessárias condições que, manifestamente, ainda não existem em Portugal.
Quem tem a paciência de me ler aqui no ECO sabe que, em contracorrente com a maioria da opinião publicada, tenho sido muito crítico da política económica e orçamental deste governo. O meu ponto pode ser sintetizado no seguinte: “o governo aproveita a bonança económica e fatores pontuais para reduzir o défice do ponto de vista nominal, mas não há consolidação orçamental estrutural”.
Tem sido muito debatido se de fato o governo está ou não a conduzir bem a política orçamental. Creio que muito já foi dito (inclusive por mim), explicando como se obteve um défice de 2% em 2016 e de 1.4% em 2017. Também já tive oportunidade de analisar o que poderá suceder se Portugal enfrentar uma recessão com um défice estrutural de 2% e uma dívida pública em torno dos 120% do PIB.
As experiências internacionais de consolidação orçamental nas últimas décadas mostram que se a receita (sobretudo fiscal), é importante num primeiro momento (pela maior rapidez na sua execução), é a despesa (sobretudo a corrente primária, isto é a despesa sem juros e investimento), que tem um papel determinante no sucesso a médio prazo. Não há consolidação orçamental sustentável se, no final, o grande esforço, ao invés de ter sido feito por via da despesa, tiver sido realizado pelo lado da receita (e se assentar numa consolidação orçamental meramente pró-cíclica).
Não resisto a partilhar uma história que me foi contada por um dos autores de um estudo que tive a oportunidade de participar. Estávamos em 2008 (eu trabalhava então no Ministério das Finanças) e a OCDE realizou um relatório intitulado “Avaliação do processo orçamental em Portugal”. Durante esse trabalho tornei-me amigo de um dos consultores da OCDE, um antigo diretor do OMB (“Office of Management and Budget”). Para quem não saiba, o OMB é o equivalente nos Estados Unidos à Direção Geral do Orçamento. Só que reporta diretamente ao Presidente.
“Um dia estava na sala oval, reunido com o Presidente Bush (filho), e a certa altura o Presidente perguntou a um diretor de uma Agência porque é que ainda não tinha apresentado o orçamento. Ao que o diretor respondeu que a culpa era do OMB e que não era possível à Agência funcionar com os cortes que estavam a ser propostos. No dia seguinte esse diretor recebeu uma carta do Presidente a agradecer os seus serviços e a dispensá-lo do cargo”.
Eu e o meu amigo, que se chama Richard Emery, voltámos a reencontrar-nos várias vezes depois de terminarmos o nosso trabalho em 2008. A primeira vez que nos reencontrámos depois de 2008 foi em 2010. Por um acaso estávamos os dois de férias perto de Toronto. E combinámos reunir as duas famílias.
Nesse dia, após as primeiras celebrações de reencontro, o meu amigo perguntou-me como estava Portugal e se as recomendações do relatório da OCDE tinham sido implementadas. Tive de reconhecer que não, daquilo que tínhamos recomendado para melhorar a qualidade da informação e da gestão orçamental muito pouco tinha sido implementado.
Continuámos a conversa sobre a situação orçamental em Portugal (e também nos Estados Unidos), e a certa altura eu disse-lhe: “a única forma de cortar despesa nos consumos (aquisição de bens e serviços) do Estado, no curto-prazo, é fazer um corte geral de 20 ou 30% nessas rubricas”. Ele sorriu e contou-me a história atrás descrita.
Mais tarde, em 2014 reencontrámo-nos em Lisboa. Voltámos a falar, e mais uma vez, mesmo com um programa de resgate financeiro, Portugal tinha ainda avançado pouco em matéria de reforma das suas finanças públicas e da sua gestão financeira do setor público.
Com a Troika, tínhamos dados alguns passos importantes, mas muito focados na gestão orçamental. O governo passou a incluir praticamente todas as entidades públicas na execução do Orçamento do Estado. Isso reduziu fortemente qualquer prática de desorçamentação. Também tinha aumentado o nível de controlo e de informação do Ministério das Finanças. Mas tudo muito focado na vertente orçamental.
Apenas no final de 2015, com a nova Lei de Enquadramento Orçamental, se começou a avançar noutras áreas: implementar um sistema de contabilidade (o SNC-AP), que agora em 2018 arrancou (embora deixando para já as autarquias de fora). Mas ainda há um longo caminho de implementação de uma Orçamentação por Programas e de sistemas de custeio e de avaliação das políticas públicas e da despesa.
A mensagem é clara: só haverá consolidação orçamental sustentável e robusta com redução da despesa. E só haverá redução da despesa com:
- Um forte compromisso político, quer no Parlamento, com uma maioria que apoie as reformas necessárias para reduzir a despesa, quer ao nível do governo. A direção política do primeiro-ministro e o Ministério das Finanças têm de dar as orientações gerais de redução da despesa. A sua implementação prática é uma responsabilidade de cada gestor, que conhece a realidade do seu organismo.
- Uma visão estratégica da missão e funções do Estado, bem como uma capacidade reformadora dos serviços públicos.
- Um plano operacional bem definido.
- Competência técnica para o executar.
Tudo coisas que, manifestamente, neste momento não existem.
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