Venezuela: o risco interno e externo de um conflito violento
O novo líder da oposição -- e agora ‘Presidente encarregado’ do país -- surpreendeu o regime. Juan Guaidó tornou-se líder quase por acaso. Mostrou frescura, simplicidade, determinação e carisma.
Tenho referido que a situação na Venezuela tem todas as características para ficar completamente fora de controlo e representa a maior ameaça à estabilidade da América Latina em 2019. Tento explicar porquê.
Comecemos por ver o que não mudou na equação essencial da Venezuela — e vejamos a seguir o que mudou e pode precipitar a queda do regime que já esteve mais longe.
Não mudou o nó górdio do problema: o povo está contra Nicolas Maduro, mas o Exército continua com Nicolas Maduro. A rejeição popular atingirá neste momento os 80% (segundo alguns estudos credíveis no país). Mas até hoje — à exceção de tentativas localizadas — os oficiais superiores das Forças Armadas, cuja safra o ‘chavismo’ teve tempo para alterar e conformar, continuam a assumir uma posição que não é apenas institucional — é também ideológica — em defesa do regime. É porventura o exemplo mais recente do peso do chamado ‘complexo militar e industrial’, no que sobra de um Estado riquíssimo em risco de se tornar num Estado falhado. Uma boa porção dos ministros são militares e parece evidente a teia de interesses que tornou as Forças Armadas parte ao mesmo tempo interessada, dominante e dependente do poder bolivariano.
Acresce o fator Cuba nesta equação. A Venezuela representa mais de metade do fornecimento de energia necessário à vida quotidiana em Cuba. Isso leva a crer que uma crise de regime em Caracas pode ter efeitos na já difícil situação política e económica em Havana. Não é um fator simplificador do problema — pelo contrário. A influência dos seus conselheiros militares na direção militar da Venezuela torna a questão muito mais internacional e georelevante. De momento, é uma influência no sentido de Maduro resistir e não ceder. O facto de Cuba ter muito a ganhar ou a perder neste assunto leva os Estados Unidos e a Rússia a estarem especialmente presentes e em confronto potencial.
O que mudou então seriamente na situação da Venezuela? Mudou a liderança da oposição; esgotou-se a paciência de muita gente empobrecida e desesperada (e que ainda não emigrou); e sobretudo acentuou-se o isolamento internacional do regime, à medida que evoluiu dramaticamente o êxodo de proporções bíblicas que se verifica da Venezuela para outras partes da região e do mundo. Este último fator transforma a questão venezuelana numa questão interna de vários Estados vizinhos — e isso, se não tiver emenda nem travão, pode constituir o fermento de um conflito regional não exatamente pacífico.
O novo líder da oposição — e agora ‘Presidente encarregado’ do país — surpreendeu francamente o regime: é melhor do que a oposição tradicional, que Nicolas Maduro, com muita manha e coação, tinha conseguirá desarticular. Curiosamente, Juan Guaidó tornou-se líder quase por acaso. Era a quarta figura de um dos partidos do centro direita. Como o líder do partido está preso, o numero dois saiu do país para não ser detido e o número três pediu asilo numa embaixada (toda uma história que revela até onde chegou a degradação das coisas) Guaidó avançou sem estar previsto e mostrou, nestes dias muito críticos, frescura, simplicidade, determinação e carisma. A insistência numa amnistia dos militares que se revoltem e até dos próprios líderes do ‘chavismo’, ou a forma como tem gerido os apoios internos e externos, revelam perícia (e coragem física). O regime envelheceu com a emergência de Guaidó.
Mudou também o limite do desespero. Até 2013 a Venezuela, beneficiando dos preços internacionais das matérias-primas, aguentou níveis de crescimento numa economia cada vez menos diversificada ou funcional. A partir daí — precisamente o momento em que começou a cessação de pagamentos às empresas locais e internacionais — o colapso foi de pior a pior. Em cinco anos o PIB da Venezuela contraiu cerca de 60% (com uma queda estimada e a pique no ano passado: menos 18%). Para os setores populares que ainda tinham simpatia pelo regime este colapso foi letal. Não há teoria da conspiração (internacional) que explique este desastre humano, económico e social. E o regime optou pelo relato conspirativo em vez de retificar os fundamentais.
Seguiu se o êxodo e o isolamento quase total no continente americano. Em três anos terão saído da Venezuela cerca de três milhões de pessoas. Olhando as posições dos vários Estados — e a rapidez com que se sucederam — pode dizer-se que desde as terras geladas do Canadá até à Terra do Fogo, as Américas, com exceção da Bolívia, Cuba e Nicarágua e El Salvador, reconheceram outro Presidente que não Nicolas Maduro. Este facto não resolve em si mesmo o impasse, mas obviamente tem consequências. Em condições racionais, a solidão externa deveria levar o regime a dar um passo no sentido de uma transição. Até agora, não o fez.
É interessante notar que há dois países latino-americanos que se mantêm relativamente equidistantes: México e Uruguai. Não me parece que seja essencialmente por identidade política como algum militantismo sugere; suponho que se estão a reservar para uma hipótese de mediação (dado que têm laços com o grupo de Lima, mas não romperam todos os laços com Caracas). O Vaticano — fiel à sua tradição diplomática — mantém uma posição de certa reserva que nem todos compreendem mas costuma ser muito útil na hora da verdade. A Conferência Episcopal da Venezuela é firmemente oposicionista e a Santa Sé mais discreta. É o resto de margem de manobra que alguém tem de preservar se se quer evitar um banho de sangue. Porque a questão vital permanece: se (ainda) não há sinais de um golpe de mão das estruturas militares; e se não há garantias mínimas para eleições transparentes que Maduro teme, como se abre caminho para a mudança que a esmagadora maioria dos venezuelanos pede? A hipótese de uma mediação responsável não se pode descartar num país que não está tão longe assim de um conflito armado e civil.
O último elemento que mudou (e é um poderoso acelerador dos acontecimentos) foi o facto de a Venezuela se ter tornado um assunto interno dos seus vizinhos — e dos vizinhos dos seus vizinhos. Ninguém deve desvalorizar a relevância do que se está a passar na Colômbia e no Brasil, por um lado, mas também no Peru, no Equador ou no Chile, com a chegada em massa de venezuelanos desesperados. Esses países simplesmente estão no limite das suas capacidades de acolhimento e começaram a sentir a consequente conflitualidade. Primeiro local e depois nacional. Há tumultos e vandalismos. Há ressentimentos e há demagogias também, na relação entre os seus nacionais e os recém-chegados. Não demorara demasiado tempo a começar a discussão sobre se a melhor forma de resolver o problema é fechar a fronteira — são milhares de quilómetros… — ou patrocinar alguma ação extra territorial…
Os riscos são tantos que só há uma certeza: quanto mais o regime atrasar uma saída política — uma transição democrática — mais os venezuelanos tenderão a sair do país; quanto mais saírem os venezuelanos, mais os países vizinhos serão tentados ou obrigados a reagir — temo que não necessariamente por meios apenas diplomáticos.
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