Relatos de duas testemunhas, uma das quais um sobrevivente, permitem entender o que aconteceu esta quarta-feira, quando o ascensor da Glória provocou pelo menos 17 mortos em pleno coração de Lisboa.
Abel Esteves, 76 anos, vive há cinco décadas no Bairro Alto. Era utilizador frequente do Ascensor da Glória, sobretudo na subida. Na tarde desta quarta-feira, “a um quarto para as cinco”, desceu a Calçada da Glória no veículo agora desfeito, acompanhado da mulher e do neto. Estranhou o barulho “muito esquisito”, e até comentou: “É falta de óleo.”
O acidente no coração da cidade de Lisboa, que vitimou mortalmente 16 pessoas, de acordo com o balanço mais recente feito pelo primeiro-ministro, aconteceu cerca das 18h. Um cabo de segurança ter-se-á partido, deixando os dois ascensores em queda livre. Em 2018, o ascensor também já tinha descarrilado e subido a calçada, mas na altura não fez feridos.
Na tarde desta quarta-feira, o ascensor que estava mais acima, acabado de iniciar a marcha, desprendeu-se e desceu a grande velocidade, até descarrilar numa curva já perto do final do trajeto, embatendo num prédio. O outro ascensor, que tinha acabado de iniciar a subida, descaiu “uns quatro ou cinco metros” até embater no início do carril.
Abel Esteves, conta, também seguia nesse elevador, sentado, já só com a mulher, para regressar a casa. Iriam umas 40 pessoas, entre as 22 sentadas e as que estavam de pé, calcula, em conversa com o ECO na manhã depois do acidente. O embate fez as pessoas que estavam de pé caírem sobre as que estavam sentadas.
“Daí a nada, vejo vir o outro por aí abaixo e digo ‘olha, já vamos morrer todos, que este vem para cima deste’”, conta o sobrevivente, que se deslocou ao local novamente esta quinta-feira, cerca das 10h da manhã, para ver o aparato. Dois estrangeiros saltaram pela janela, recorda.
Entre o “fumo muito preto” e o susto, Abel Esteves diz que, após sair do ascensor, subiu sozinho a Calçada da Glória. “Estavam dois senhores. Tiraram então uma senhora toda cheia de sangue e puseram-na assim deitada. Eu estava também assim a puxar os ferros. Puseram-na ali deitada, mas estava viva. Quando tiraram a segunda, eu disse ‘esta senhora já está morta, ponham-na ali no passeio’. A senhora já estava morta”, explica, sem conseguir conter as lágrimas.
Chegaram então “quatro ou cinco polícias da esquadra do Bairro Alto e dois fiscais da Carris”, que estavam nas proximidades, conta a testemunha. “Eu disse para os polícias: ‘Aquela senhora que está ali no passeio já está morta e as outras estão todas encarceradas. Tudo o que está lá dentro do elétrico está tudo morto’, disse eu para eles”, descreve.
Acabaria por ir para casa, por se estar “a sentir mal” e com uma dor na perna. Questionado pelo ECO sobre se recebeu algum apoio psicológico, diz que não. E foi ao hospital? “Não fui. Só me doía a perna. Eu queria era ir para casa.”
“Parecia uma caixa de papelão a desfazer-se completamente”
Teresa d’Avó, ex-jornalista, também testemunhou o acidente com um amigo, mas não estava em nenhum dos elétricos. O primeiro, que estava mais próximo, “embateu na calçada com muita força”; “as pessoas lá dentro começaram a gritar, ficaram assustadas”, explicou ao ECO na quarta-feira, ao final da tarde, com o acontecimento bem fresco na memória.
Foi quando se preparava para começar a ajudar que viu o outro veículo a descer desgovernado: “Olho para cima e vejo o elevador de cima a vir completamente desenfreado. Não vinha de todo à velocidade normal do elétrico. Só tivemos tempo de virar as costas e começarmos a correr, porque não sabíamos, uma vez ele embatendo no debaixo, com certeza e garantidamente que tinha vindo até à estrada”, contou.
“Vi o embate todo. Quando olho para trás, vejo o elevador a cair. Por causa da curva ele tombou e embateu contra o prédio. A única coisa que eu me apercebi — não foi ninguém dentro do elétrico — foi um homem que estava no passeio… e dificilmente essa pessoa estará viva…”, afirmou.
Para esta testemunha, o ascensor da Glória “parecia uma caixa de papelão a desfazer-se completamente contra o prédio”. Houve “pó, barulho e as pessoas a gritarem”.
Na manhã desta quinta-feira, no rescaldo da tragédia, eram às dezenas os curiosos presentes no local. A notícia atravessou as fronteiras, atraindo jornalistas de vários países, como Espanha, França e Reino Unido. Elementos da Polícia Judiciária continuavam os trabalhos de investigação e peritagem.
Abel Esteves, visivelmente consternado, e surpreendentemente sem apoio, observa o que resta do ascensor. O que sente? Ao responder, larga-se em lágrimas: “Agora que vim ver isto, eu já não vou mais andar de elétrico. Já não vou. Não vou não. Não vou andar mais de elétrico.”

(Atualizado às 13h58, depois de o primeiro-ministro ter corrigido os dados oficiais — estão confirmados 16 mortos, e não 17, como tinha sido avançado esta quinta-feira pela Proteção Civil)
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
“Se o ascensor não bate na parede, morríamos aqui todos”
{{ noCommentsLabel }}