Uma cidade de aço e robôs onde os carros nunca dormem

A depressão Cláudia castigou Palmela e obrigou a Autoeuropa a parar temporariamente a produção, mas nada trava a máquina alemã que há 30 anos continua a ser o maior investimento estrangeiro no país.

A chuva não dava tréguas quando o ECO atravessou os portões da Autoeuropa, em Palmela, numa manhã marcada pela passagem da depressão Cláudia. O distrito de Setúbal foi um dos mais afetados pelo temporal, e a fábrica de Palmela não escapou. No dia anterior à visita, a água invadiu algumas zonas da unidade industrial, forçando a interrupção temporária da produção, uma paragem que lembrou, ainda que de forma menos dramática, outras crises que a empresa já atravessou nos seus quase 30 anos de história.

Mas naquela manhã de novembro, apesar da chuva intensa que continuava a cair lá fora, a linha de montagem do T-Roc voltava a funcionar a todo o vapor. Pelas 11h29, um ecrã gigante no final da linha de produção anunciava um número histórico: acabava de sair da fábrica o automóvel número 4.221.717 desde a inauguração em 1995. Um marco simbólico que sublinha a relevância desta unidade na economia portuguesa, que é liderada por Thomas Hegel Gunther desde 1 de dezembro de 2021, e que é uma das 114 fábricas do grupo alemão.

Ao cruzar os portões da da entrada principal da Autoeuropa, a dimensão deste gigante automóvel é a primeira coisa que impressiona. O parque industrial ocupa 1,1 milhões de metros quadrados, o equivalente a 154 campos de futebol. É uma pequena cidade dentro de Palmela, onde trabalham cerca de 5 mil pessoas distribuídas por 19 turnos semanais, num regime implementado em 2019 e que os trabalhadores preferiram aos anteriores horários. A fábrica só não funciona em dois períodos da semana: na madrugada de sexta-feira para sábado e na madrugada de sábado para domingo.

A precisão e coordenação dos braços robóticos FANUC domina o cenário na Autoeuropa, onde as máquinas nunca param. Cada movimento é programado ao milímetro, transformando o aço em carros e tornando a robotização o verdadeiro motor da fábrica. Luís Leitão 14 novembro, 2025

O chão de fábrica é marcadamente organizado, limpo e, surpreendentemente, não é tão barulhento quanto se poderia esperar de uma unidade industrial desta dimensão. O que se vê são linhas de montagem repletas de máquinas da Fagor, Weingarten, Schuler, Hubtex, Kuka e Fanuc (os braços robóticos que executam tarefas com precisão cirúrgica) e muita automatização de processos.

São também muitos os trabalhadores que circulam de bicicleta entre as diferentes secções. Há inclusive “parques” de bicicletas estrategicamente distribuídos pelo chão de fábrica. Uma vending machine de luvas de trabalho — sem qualquer custo para os funcionários — é outro pormenor que ilustra a atenção aos detalhes.

A mecanização é omnipresente. Peças pesadas e motores são transportados pela fábrica de forma autónoma por robôs AGV, orientados por linhas pretas pintadas no chão. Na zona de pintura, as carroçarias do T-Roc são transportadas por uma carreira mecanizada suspensa, libertando espaço no chão de fábrica — uma solução que evidencia a preocupação com a eficiência espacial num complexo industrial desta magnitude.

Um dos motes omnipresentes na fábrica resume bem a filosofia de trabalho na Autoeuropa: “Um bom dia na fábrica é um dia sem acidentes.”

Mas se há um equipamento estrela que simboliza a modernização da Autoeuropa é a nova Prensa XL. Este colosso de aço, que custou quase 53 milhões de euros, substituiu a prensa que durante 30 anos moldou as chapas metálicas que dão forma aos automóveis produzidos em Palmela. A nova máquina representa um salto tecnológico significativo, permitindo um aumento da capacidade de produção, sendo crucial para a estampagem de peças tanto para o T-Roc como para o futuro modelo elétrico, o ID.EVERY1, que chegará em 2027.

A Autoeuropa é a única fábrica automóvel em Portugal com uma área de prensas, sendo que a unidade mais próxima com capacidade semelhante está a 1.200 quilómetros de distância, em Barcelona.

A fábrica divide-se em quatro áreas principais de produção de alta tecnologia: prensagem, construção de carroçarias, pintura e linha de montagem. É nesta última que o trabalho das equipas de 6 a 8 pessoas ganha vida. Ao longo da linha, veem-se muitas mulheres, tanto na zona de montagem como na pintura. Atualmente, 17,5% da força de trabalho são mulheres, e a média de idades dos trabalhadores situa-se abaixo dos 40 anos.

Um dos motes omnipresentes na fábrica resume bem a filosofia de trabalho na Autoeuropa: “Um bom dia na fábrica é um dia sem acidentes.” A cultura de segurança é levada a sério, assim como a relação com os trabalhadores. “Temos tido um ambiente de paz social na fábrica”, refere Leila Madeira, que nos guia durante a visita, acrescentando que “isso é um elemento positivo da nossa fábrica e nos tem ajudado a crescer”.

Mas a história da Autoeuropa não foi sempre um mar de rosas. Em 2003, a fábrica enfrentou uma crise profunda. Nesse ano, celebrou-se o primeiro milhão de carros produzidos, mas também se registou uma quebra drástica no volume de produção que levou à assinatura de um acordo laboral histórico: a introdução dos downdays. Estes dias de paragem pagos, concedidos como contrapartida de um congelamento salarial e maior flexibilidade, tornaram-se uma das marcas da negociação coletiva na Autoeuropa e evitaram despedimentos coletivos.

Atualmente, os trabalhadores têm 25 dias úteis de férias por ano e mais 22 downdays. O modelo de negociação permanente entre a administração e a comissão de trabalhadores é apontado como um caso de sucesso na negociação coletiva ao nível da empresa em Portugal.

Thomas Hegel Gunther, diretor-geral da Autoeuropa, no decorrer da apresentação internacional da nova versão do T-Roc aos jornalistas. Volkswagen AG 14 novembro, 2025

O T-Roc com selo “made in” Portugal que conquistou a Europa

A história da Autoeuropa começa longe de Palmela. Foi em março de 1989, à mesa do restaurante Le Lac, em Genebra, que o então ministro da Indústria e Energia, Luís Mira Amaral, se encontrou com Dieter Ullsperger, diretor financeiro da Volkswagen, num encontro facilitado por Carmo Jardim, da SIVA, então importador da Volkswagen em Portugal. Naquele almoço à beira do Lago Léman, durante o salão automóvel de Genebra, nasceu o embrião do que continua a ser, até hoje, o maior investimento industrial estrangeiro em solo português.

Vários países europeus estavam na corrida, mas Portugal acabou por ganhar. Os mais de 141 milhões de contos (cerca de 2 mil milhões de euros aos preços de então) de incentivos fiscais, financeiros e outros que o governo de então disponibilizou foram cruciais.

Para concretizar o projeto, a Volkswagen e a Ford, que criaram uma joint-venture em 1991, compraram os terrenos da Quinta da Marquesa a António Xavier de Lima por 4.425 milhões de escudos (cerca de 55 milhões de euros aos preços de hoje atualizado pela inflação). Esse cheque histórico, datado de 21 de junho de 1991 e sacado de uma conta da Ostra-Sociedade Imobiliária no extinto Banco Espírito Santo, está hoje exposto numa parede da fábrica, juntamente com os 21 acordos laborais assinados entre a administração e a comissão de trabalhadores desde 1994. O nome “Ostra” era o código utilizado para o projeto que viria a dar origem à Autoeuropa.

O cheque que levou à compra dos terrenos da Quinta da Marquesa a António Xavier de Lima, onde foi posteriormente construído a Autoeuropa, e que tinha o nome de código “Ostra”.D.R.

A primeira pedra foi lançada em dezembro de 1991, e a inauguração oficial aconteceu a 26 de abril de 1995, com a presença do então primeiro-ministro Cavaco Silva. Em maio desse ano, começou a produção dos três modelos iniciais: o Volkswagen Sharan, o SEAT Alhambra e o Ford Galaxy. Em 1999, a Volkswagen assumiu 100% do capital social e a fábrica ganhou outros contornos.

À saída da fábrica há inclusive um cantinho especial dedicado ao Volkswagen Sharan, que deixou Palmela em outubro de 2022 após 27 anos de produção. “Foi o modelo que lançou as bases da nossa história de sucesso. Os modelos que se seguiram, o Scirocco e o Eos, contribuíram para a consolidação da fábrica, mas o monovolume foi sempre o carro que nos caracterizou”, referiu na altura Thomas Hegel Gunther, diretor-geral da empresa

No entanto, é o T-Roc, o SUV compacto que saiu pela primeira vez da linha de montagem em 2017, que transformou a Autoeuropa numa potência industrial. Desde então, a fábrica quase duplicou o número de trabalhadores, passando de cerca de 2.500 para quase 5.000 pessoas, e passou a trabalhar em regime contínuo, concentrando-se exclusivamente na produção deste modelo.

Ao longo de três décadas, a Autoeuropa recebeu substanciais benefícios fiscais e apoios do Estado português. Agora, são mais 30 milhões de euros de dinheiro público para apoiar a produção do ID.EVERY1.

No ano passado, a Autoeuropa produziu cerca de 236,1 mil T-Rocs, foi o melhor ano desde o recorde de 254,6 mil unidades produzidas em 2019, quando ainda tinha na linha de produção existiam os monovolumes Volkswagen Sharan e Seat Alhambra. Para este ano, apesar de não se comprometer com um número, Thomas Hegel Gunther refere ao ECO que a Autoeuropa “deverá terminar o ano com um volume de produção semelhante ao do ano passado”. Nestas contas já estará a produção do novo modelo do T-Roc, que até ao início de novembro já contabilizava 7 mil unidades produzidas.

O sucesso comercial do T-Roc é inegável. É o carro mais vendido do grupo alemão e foi o terceiro automóvel mais vendido na Europa nos primeiros nove meses deste ano, apenas superado pelo Renault Clio e o Dacia Sandero. Um desempenho que confirma o acerto da aposta da Volkswagen em Palmela, que ganhará um novo impulso com a nova geração que chega agora ao mercado na versão híbrida de 1.5 litros eTSI de 85kW e 110 kw — e que tal como no modelo inicial, terá também uma versão customizada “made in” Portugal.

Para a economia portuguesa, a relevância da fábrica de Palmela é substancial. Em 2024, o volume de negócios da Autoeuropa atingiu 3,8 mil milhões de euros, com um impacto de 1,6% no PIB nacional e 4,5% nas exportações. A fábrica alemã é responsável por cerca de 71% de toda a produção automóvel em Portugal, segundo dados oficiais.

Mas a Autoeuropa não produz apenas automóveis completos. Através da unidade de cunhos e cortantes produz anualmente mais de 30 milhões de peças prensadas para as várias marcas do grupo Volkswagen. Só no ano passado foram 35,2 milhões de peças, o melhor resultado desde 2019, quando atingiu 38,6 milhões, gerando 31,6 milhões de euros em volume de negócios para a fábrica.

No meio da produção do novo T-Roc, a história da Autoeuropa é recordada com uma exposição de carroçarias dos vários modelos que passaram pela linha de montagem, que começa com o emblemático Volkswagen Sharan e chega aos dias de hoje com o pequeno SUV da marca alemã. Volkswagen AG

A unidade da Volkswagen em Palmela trabalha com cerca de 700 fornecedores, muitos de Portugal. A Introsys, por exemplo, em conjunto com a Autoeuropa desenvolveu e implementou um sistema inovador para automatizar a seleção manual de componentes – uma das tarefas mais críticas no chão de fábrica. Segundo Thomas Hegel Gunther, no ano passado, 58% do volume de compras da fábrica foi feito a fornecedores nacionais.

Porém, a maioria dos fornecedores é oriunda de outros países europeus, como a espanhola Sesé, uma empresa de logística que desde fevereiro assumiu a gestão dos serviços logísticos internos da fábrica de Palmela, incluindo a gestão de armazéns, cargas, descargas, expedição e abastecimento da linha de produção.

Mas Thomas Hegel Gunther não veio a Portugal para olhar para o passado. O alemão de 47 anos, que fez toda a carreira no grupo Volkswagen desde 2000, tem os olhos postos no futuro. E esse futuro passa por um investimento previsto de 809 milhões de euros entre 2025 e 2029, focado na descarbonização da fábrica, “do qual se destaca a nova pintura que representa na totalidade um investimento de cerca de 300 milhões de euros”, que prevê a redução de 100% nas emissões de CO2 face ao atual sistema, substituindo o forno alimentado a gás natural por um totalmente elétrico, refere Thomas Hegel Gunther ao ECO.

Mas é também um plano de investimento fortemente centrado na linha de montagem da nova versão do T-Roc e na produção do novo modelo elétrico, o ID.EVERY1, que arrancará dentro de dois anos.

A Autoeuropa é muito mais do que uma simples unidade de produção automóvel. É o coração industrial de uma região, o motor de milhares de empregos diretos e indiretos, e um dos pilares das exportações portuguesas.

Sobre a escolha de Palmela para o ID.EVERY1, o diretor-geral da Autoeuropa sublinha a competitividade da fábrica. “A empresa está numa posição muito boa em termos de produtividade, e graças ao sucesso do T-Roc, a empresa tem elevado volume de produção”, afirmou. Mas há um lado desta história que raramente é contado com a mesma ênfase. Ao longo de três décadas, a Autoeuropa recebeu substanciais benefícios fiscais e apoios do Estado português. Agora, são mais 30 milhões de euros de dinheiro público para apoiar a produção do ID.EVERY1. Entre 2013 e 2024, o volume de investimento na Autoeuropa superou os 1,1 mil milhões de euros, parte dele com apoio estatal e fundos europeus.

O Governo justifica o apoio com os critérios de descarbonização, inovação e exportação. “Houve o objetivo de compensar o esforço de descarbonização que está em causa”, explicou o ministro da Economia, Manuel Castro Almeida, durante o anúncio desse apoio. Mas a verdade é que, sem essa ajuda, dificilmente Portugal conseguiria competir com outros países europeus na atração deste tipo de investimento. A questão que fica é: até quando o Estado português continuará a subsidiar uma das maiores multinacionais alemãs?

O novo T-Roc a sair da linha de montagem na Autoeuropa, símbolo de um sucesso que mexeu com a fábrica. Desde 2017, foram produzidas 2 milhões de unidades, com 236 mil carros em 2024, tornando-o o Volkswagen mais vendido na Europa e o pilar da economia automóvel nacional. Volkswagen AG 14 novembro, 2025

Quando se sai da fábrica, depois de algumas horas a percorrer os diferentes setores da linha de montagem, fica a certeza de que a Autoeuropa é muito mais do que uma simples unidade de produção automóvel. É o coração industrial de uma região, o motor de milhares de empregos diretos e indiretos, e um dos pilares das exportações portuguesas.

Mas também fica a dúvida: o que acontecerá quando o T-Roc chegar ao fim do ciclo de vida em 2033? E se o ID.EVERY1 não conseguir replicar o sucesso comercial do T-Roc num mercado europeu onde a concorrência chinesa está a pressionar fortemente as marcas europeias? Thomas Hegel Gunther não quis comentar o futuro pós-2033, mas a história da Autoeuropa mostra que a fábrica já sobreviveu a várias crises e reconversões.

Por agora, numa tarde chuvosa em Palmela, com a depressão Cláudia a afastar-se lentamente, a linha de montagem continua a funcionar. E o ecrã gigante no final da linha já marca um novo número. Mais um T-Roc acabou de nascer. Destino: algum país europeu, como sucede com 99% dos carros que aqui são produzidos. Portugal fica com os empregos, os impostos (depois dos benefícios fiscais) e a fatura da água que invadiu a fábrica quando a chuva apertou. Mas essa é outra história.

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