Descentralização: Todos querem, ainda ninguém a fez. Porquê?

  • Marta Santos Silva
  • 17 Setembro 2017

A descentralização surge sempre nas campanhas, mas depois é feita de avanços e recuos. Agora que falamos de autárquicas relembre: para quê descentralizar, que caminho foi feito e onde estamos agora?

É falada em todas as campanhas eleitorais para as legislativas, é prometida com frequência aos municípios. Entre os dois grandes partidos do poder, atiram-se mutuamente acusações para saber quem é que não a deixa avançar. Está no programa do Governo como “base da reforma do Estado”, mas no fim de dois anos de governação o Executivo de Costa tem pouco para mostrar, e Portugal continua um dos países menos descentralizados da Europa.

É da descentralização que se fala. Na Constituição de 1976 previa-se um processo de regionalização que nunca aconteceu, em 1998 chumbou-se em referendo a criação de regiões, ou pelo menos, como se lia nalguns cartazes de então, “assim não”, e entretanto os governos, de Durão Barroso até António Costa, têm dado passos em frente e saltos para trás no tópico da descentralização de competências, a alternativa considerada mais consensual. Para conseguir tanto apoio da direita à esquerda no Governo, tem de haver vantagens na descentralização. Quais são, o que se fez, o que falta fazer?

Quais são as vantagens da descentralização?

Partindo de uma perspetiva apenas económica, parece haver logo vantagens para uma maior descentralização. Regra geral, os países mais desenvolvidos do mundo são os mais descentralizados, como veremos adiante, ou seja, as competências e os fundos para realizar certas tarefas e decisões estão localizadas não no Estado central mas sim junto de regiões administrativas mais pequenas, dependendo da organização do país.

Mesmo o Fundo Monetário Internacional (FMI) que, como escreve o investigador da Universidade do Minho Rui Nuno Baleiras num artigo de 2009, “tradicionalmente encarava a descentralização como uma ameaça à solidez das finanças públicas” passou a recomendá-la — Teresa Ter-Minassian, então responsável do FMI, escreveu que deveriam ser incentivadas reformas para aproximar as escolhas públicas das preferências dos cidadãos por essa via.

Certos estudos mostram mesmo que a descentralização pode ajudar a manter as finanças públicas sob controlo. Na sua tese de mestrado em Economia na Universidade do Porto em 2016, Rafael Sousa demonstrou que “um aumento do grau de descentralização fiscal provoca um [aumento] no saldo orçamental agregado (nacional)”, ou seja, que a descentralização fiscal tem um impacto positivo nas finanças públicas nacionais, pelo menos até um certo ponto.

Mas há benefícios fora dos económicos. José Cádima Ribeiro, investigador da Universidade do Minho entrevistado por Patrícia Fernandes para a sua tese na Universidade Nova de Lisboa, defendeu que a descentralização poderia servir para “aproximar o poder dos cidadãos e criar contexto para uma melhor perceção por parte dos atores políticos da realidade dos territórios, que só a proximidade pode conferir”. Essa proximidade faz com que seja possível “desenhar políticas em conformidade” com a realidade local e, ainda, “conseguir-se um nível mais elevado de mobilização dos atores e das comunidades para o ataque aos problemas percebidos”.

A história começa há 40 anos

Lembra-se da regionalização? Ao ECO, Patrícia Fernandes, que escreveu a sua tese sobre a história da regionalização e da descentralização em Portugal desde o 25 de Abril na Universidade de Lisboa, relembra que a regionalização estava prevista há muito, na Constituição de 1976. No entanto, a reforma foi sendo adiada por vários Governos.

"As regiões administrativas são criadas simultaneamente, por lei, a qual define os respectivos poderes, a composição, a competência e o funcionamento dos seus órgãos, podendo estabelecer diferenciações quanto ao regime aplicável a cada uma.”

Constituição da República Portuguesa

Artigo 255º do Capítulo IV do Título VIII da Parte III

Com uma crescente pressão para concretizar essa regionalização após a entrada na Comunidade Económica Europeia (CEE), acabou por cair nas mãos de António Guterres, no seu mandato que começou em 1995, a concretização desta ambição constitucional. No entanto, as coisas não correriam de feição. Um referendo organizado em 1998, no qual participaram menos de metade dos eleitores, teve respostas negativas às suas duas perguntas: “Concorda com a instituição em concreto das regiões administrativas?” e “Concorda com a instituição em concreto da região administrativa da sua área de residência?”. Depois disso, quase não se insistiu — haveria até desentendimentos internos entre o primeiro-ministro António Guterres e Mário Soares, que era contra a regionalização. Parecia, assim, que a porta ficava fechada à reforma, que não voltou a surgir com pujança no debate público.

“O problema grande da regionalização, desde a década de 1990 em que foi feito o referendo, é que era difícil definir os limites”, argumenta ao ECO Patrícia Fernandes. “As terras tinham opiniões diferentes. O plano que na altura foi apresentado não era de todo adequado, nem para altura nem agora, com tantos anos em cima”. Além disso, acrescenta: “Os cidadãos não percebem, nunca foram esclarecidos devidamente. Uma pessoa que no dia-a-dia não se interessa minimamente por isso, depois é-lhes posto um papel à frente e têm de votar pelo que acha melhor”.

José Sócrates: O “coveiro” da regionalização

A acusação de “coveiro” a José Sócrates chegou perto do final da legislatura desse primeiro-ministro, e partiu de Miguel Relvas. Porquê? Relvas tinha sido secretário de Estado da Administração Local de Durão Barroso e, num artigo de opinião publicado no Público em 2011, defendeu que José Sócrates chegou ao Governo com um modelo de descentralização já construído que optou por ignorar. Segundo argumentava então Relvas, o modelo escolhido durante o Governo Barroso fora de uma lei das Áreas Metropolitanas, que permitia que os municípios se associassem a elas voluntariamente.

“A fórmula era simples e, como a prática demonstrou, funcionava bem — os municípios passaram a associar-se numa base voluntária, assumindo a obrigação de permanecerem na área que escolhessem por um período mínimo de cinco anos. Além disso, perspetivava-se que, com o decurso do tempo e com o aprofundamento das relações entre os municípios que as integravam, essas áreas viessem a substituir os distritos como círculos eleitorais, e que os presidentes daquelas grandes áreas viessem a ser eleitos”, escrevia o ex-secretário de Estado da Administração Local.

No entanto, o projeto não terá sido continuado por José Sócrates, o que lhe valeu críticas tanto da direita — Miguel Relvas chegou a chamar-lhe, noutro contexto, “o coveiro da regionalização, tal como (…) responsável pela interrupção da descentralização administrativa” — mas também da esquerda. Um outro ex-secretário de Estado da Administração Local, Eduardo Cabrita, foi citado pela Lusa em 2011 dizendo que Sócrates “nada fez para dar cumprimento ao programa do Governo em matéria de reforma de Estado e descentralização”. Para Cabrita em 2011, a solução favorita era a regionalização com a ajuda de uma boa lei de financiamento: “Com uma lei de financiamento clara para garantir a disciplina orçamental, tal como já sucede com os municípios que tiveram um saldo positivo em 2010, não haveria o risco de se aumentar a despesa pública com as futuras regiões”, disse.

Com Cabrita, será desta?

Anos depois, é novamente Eduardo Cabrita quem está à frente do destino da descentralização em Portugal. Dois anos de legislatura depois, porém, parece haver pouco de tangível para mostrar. Uma proposta de lei foi entregue pelo Governo em março e debatida em comissão, mas acabou por ser decidido que seria aprofundada após as eleições autárquicas. Questionada pelo ECO, fonte do gabinete do Ministro Adjunto garantiu que o adiamento foi “por decisão do Parlamento”.

“O Governo entregou na Assembleia da República a Lei Quadro e os diplomas setoriais que definem, área a área, as competências a descentralizar”, disse a mesma fonte. “Todos os diplomas foram discutidos com a Associação Nacional de Municípios Portugueses e a Associação Nacional de Freguesias. Esta é uma reforma prioritária para o Governo e a discussão parlamentar para a sua concretização será retomada após as eleições autárquicas“.

É verdade que, no programa do Governo, a descentralização é descrita como “base da reforma do Estado”. O programa do Governo inclui novas regras de financiamento local, de maneira a “convergir para a média europeia de participação na receita pública”, através da implementação de medidas que permitam aos municípios usufruir mais diretamente de receitas fiscais para acompanhar o crescimento das suas competências.

Fizemos mais contratos na área da educação, 12 ou 13 municípios, que abrangiam na prática municípios com uma dimensão correspondente a um milhão e 200 mil habitantes, 120 mil alunos. Era um projeto piloto com 12% da população do país abrangida.

António Leitão Amaro

Deputado do PSD

No entanto, o deputado da oposição António Leitão Amaro discorda da estratégia do Governo e faz críticas à forma como este geriu a transição do programa que estava em vigor no Executivo anterior, liderado por Pedro Passos Coelho. Leitão Amaro, que foi secretário de Estado do Poder Local, exemplificou ao ECO algumas das experiências de descentralização feitas pelo Governo de coligação PSD/CDS, em altura de crise.

Por um lado, através de legislação específica, os transportes de passageiros, com poucas exceções, foram transferidos para os municípios — “envolve competências desde dizer quais são os transportes que existem, por quem eles são prestados, quais as linhas…”, explicou. Por outro, acrescentou, foram feitos contratos com municípios específicos para a transferência de competências em áreas como a saúde, a educação e a cultura. “Fizemos mais contratos na área da educação, 12 ou 13 municípios, que abrangia na prática municípios com uma dimensão correspondente a um milhão e 200 mil habitantes, 120 mil alunos. Era um projeto piloto com 12% da população do país abrangida”. O Governo de António Costa, afirma Leitão Amaro, “nunca publicou nenhuma avaliação nem nenhum relatório sobre isso”.

A crise foi boa… pelo menos numa coisa

Para a economista Linda Veiga, da Universidade do Minho, a crise económica pode ter ajudado a pavimentar o caminho para uma descentralização mais suave. A crise, explicou ao ECO a autora do artigo “Descentralização orçamental: questões de autonomia e responsabilização”, disponível aqui, “levou a uma maior preocupação com a organização e gestão do setor público e à adoção de medidas tendo em vista a melhoria da eficácia no seu funcionamento e ao aumento da transparência na gestão dos recursos públicos”, inclusive ao nível da administração local. “Assim, penso que as alterações introduzidas criaram um quadro mais favorável à descentralização ao potenciarem os efeitos positivos da mesma”, escreveu, numa resposta por email às questões colocadas pelo ECO.

Quais os principais desafios que Eduardo Cabrita tem pela frente? Segundo Linda Veiga, um dos principais é equilibrar o financiamento com o alargamento das competências das autarquias, de uma forma que permita monitorizar os resultados. “É importante que toda a legislação de enquadramento seja cumprida”, afirmou, ecoando o que o atual ministro Adjunto dizia em 2011.

Para Lídia Veiga, também é importante “continuar a estimular o envolvimento dos cidadãos nas decisões públicas e aumentar a seu nível de entendimento das matérias relativas à política orçamental. A descentralização será mais benéfica se os governantes locais forem responsabilizados pelas políticas adotadas e existir transparência e confiança mútua entre os atores envolvidos”.

Numa entrevista ao Público em agosto, Eduardo Cabrita adiou novamente para depois das autárquicas mais pormenores sobre a descentralização, mas sublinhou a sua importância. “A descentralização é o maior desafio de reforma do Estado que existe nesta legislatura. Temos consciência de que é uma reforma que — cumprindo a Constituição, aplicando o princípio da subsidiariedade, aproximando-nos das melhores práticas europeias — visa alterar profundamente o modo como se distribui o exercício de poderes”, afirmou então. E o Partido Socialista vai precisar de ajuda. “É fundamental que o PSD, que é um grande partido autárquico, tenha sentido de responsabilidade de ser aqui parte da solução. O PSD e diria todos os partidos. Todos apresentaram propostas e consideramos isso muito positivo”, acrescentou.

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