Assédio no local de trabalho: um silêncio que pode estar prestes a mudar

Em outubro de 2017 entrou em vigor nova legislação sobre a matéria. Será que veio mudar o panorama e tornar mais visível esta realidade? A Advocatus de março foi saber. Leia aqui o trabalho na íntegra

Segundo um estudo do Centro Interdisciplinar de Estudos de Género (CIEG) relativo a 2015, em Portugal cerca de 12,6% das pessoas já foram vítimas de assédio sexual e 16,5% de assédio moral, números muito superiores à média europeia. Em outubro de 2017 entrou em vigor nova legislação sobre esta matéria. Será que veio mudar o panorama e tornar mais visível esta realidade? A Advocatus foi ouvir dois casos distintos, vários advogados e outros especialistas para tentar perceber.

«Um dos episódios de que me lembro bem foi de um dia me ligarem a pedir que fosse para o escritório porque ia haver uma reunião da direção e “precisavam de uma menina bonita”», começa Maria (nome fictício) por contar, sobre uma situação de assédio moral e sexual que viveu no trabalho.

“Foi no meu primeiro emprego. Era quase o emprego de sonho, no departamento de enoturismo de uma grande empresa de vinhos” – explica Maria, licenciada em Turismo, hoje com 30 anos – “mas o trabalho em si acabou por ser um pesadelo”. Depois de um estágio na área do enoturismo soube, uns meses mais tarde, por intermédio de uma ex-colega, que a empresa Dão Sul – que produz os vinhos Cabriz – estava à procura de pessoas para o mesmo departamento.

A proposta tinha tudo a seu favor: era perto de casa dos pais, tinha quintas em vários pontos do país e era uma empresa conceituada. Maria ficou colocada na sede da empresa, na Quinta de Cabriz, em Carregal do Sal, alojada num quarto de um apartamento para funcionários.“Mandei o meu currículo, chamaram-me para entrevista e quando entrei comecei um período de experiência pago. Se passasse esse período era para avançarmos para estágio profissional. Passei, mas vim-me embora antes sequer de começar o estágio.”

Rapidamente, a situação passou de bestial a besta. Desde a falta de acompanhamento ou tutoria à própria delegação de funções, Maria chegava ao trabalho sem saber o que fazer. “Literalmente… Porque não me foi atribuída qualquer função”. Por iniciativa própria, começou então a servir comida e a tirar cafés no restaurante da quinta. “Quando foi preciso, por falta de pessoal, até tachos eu lavei, varria o chão… Chegava ao restaurante da quinta todos os dias e não me punham a par do que se passava, nem de eventuais tarefas. Depois, quando acontecia alguma coisa, responsabilizavam-me e vinham pedir-me justificações, principalmente o chefe do departamento e o chefe executivo”.

Se as ementas não estavam impressas, a culpa era de Maria. Trabalhava das 9h até às 23h, os sete dias da semana, sempre de pé, muitas vezes sem saber sequer onde podia almoçar. “A isto tudo junte-se as conversas de teor sexual por parte dos meus superiores, a que eu me esquivava sempre, e as tentativas de conquista por parte do chefe executivo (que hoje é relativamente conhecido)”, revela.

Ao fim dos três meses do período experimental, Maria sentiu que era tempo de se vir embora, dado o seu quadro mental. “Nessa altura estava quase suicida, de tal forma me fizeram sentir inútil, estúpida e humilhada. Como se fosse eu que não percebia o que tinha de fazer, como se fosse eu que não tomava a iniciativa… Quase como se fosse eu que merecia tudo aquilo.”

 

Dados do CIEG

 

No trabalho o clima de medo estava instalado. Na altura, Maria falou com os pais e com o namorado sobre a experiência, mas pouco lhe serviu de consolo. “O meu pai dizia que o problema era meu, que eu é que não estava a saber aproveitar a oportunidade que me tinha sido dada. A minha mãe não dizia grande coisa, ela tem uma personalidade de aguentar coisas calada. O meu namorado era o único que ia tentando dar algum apoio, mas também não sabia bem o que fazer”, confessa, resignada.

No fim, quando saiu, Maria convenceu-se de que nunca conseguiria trabalhar em lugar nenhum. Ficou com dormência nos dedos dos pés, mesmo usando calçado profissional. Passados dois anos, começou a fazer psicoterapia.

Em resposta enviada à Advocatus, a Dão Sul/Global Wines diz que “as empresas referidas nunca tomaram conhecimento de qualquer comportamento de assédio. Jamais foram levados ao conhecimento das administrações, formal ou informalmente, a ocorrência de condutas impróprias por parte dos seus colaboradores ou para com os seus colaboradores”.

Acrescentam que as empresas “negam todas as acusações que lhes foram dirigidas, manifestando total repúdio por todos os comportamentos de assédio”, sublinhando que “caso tivessem conhecimento de tais práticas as mesmas seriam fortemente reprimidas e os seus praticantes alvo de sanções disciplinares”.

Se a partir da terra dos holofotes e da sétima arte se tem vindo a debater largamente o tema do assédio, em Portugal a discussão tem pairado sobretudo em matérias legais.

Ainda antes de o movimento #MeToo ter sido eleito pela Time como a personalidade do ano passado por ajudar a desmascarar casos de assédio sexual há muito silenciados em Hollywood, saía por cá em agosto alterações ao Código de Trabalho nas questões do assédio moral e sexual no local de trabalho, que constam na Lei nº73/2017, em vigor desde 1 de outubro.

Num país onde 12,6% das pessoas já sofreram de assédio sexual no trabalho, comparados com uns meros 2% da média europeia, será que estas alterações vieram reforçar os mecanismos de prevenção e combate a estas práticas?

O que muda agora?

Apesar de já existir legislação na matéria do assédio sexual e moral desde 1969 em Portugal, para Nuno Morgado, sócio da PLMJ e especialista em Direito do trabalho, estas alterações “encontram-se numa política de reforço ao combate do assédio no trabalho, que cada vez mais é uma tendência e uma preocupação”.

E como é que esse reforço acontece? “No essencial, uma das grandes mudanças prende-se com a obrigatoriedade das empresas com mais de sete trabalhadores em adotar um código de conduta. Não tem propriamente um conteúdo definido por lei, mas têm de informar os trabalhadores das práticas que podem integrar os assédios. E definir mecanismos de suporte quando isso surja”, explica o advogado.

Nuno Morgado, da PLMJ.

No essencial, uma das grandes mudanças prende-se com a obrigatoriedade das empresas com mais de sete trabalhadores em adotar um código de conduta. Não tem propriamente um conteúdo definido por lei, mas têm de informar os trabalhadores das práticas que podem integrar os assédios. E definir mecanismos de suporte quando isso surja.

Nuno Morgado

Sócio da PLMJ e especialista em Direito do trabalho

Ficou também consagrado e explícito que existe agora obrigatoriedade, em caso de assédio, de avançar com um processo disciplinar ou um inquérito quando é apresentada queixa. Sandra Silveira, associada sénior da Cuatrecasas e especializada em Direito e assessoria laboral, destaca também a imunidade disciplinar da vítima e das testemunhas: “A meu ver, também é importante realçar a previsão expressa de que o anunciante e as testemunhas estão protegidos – por exemplo, fica agora determinado que o despedimento ou qualquer outra sanção até um ano após a denúncia do caso de assédio, sejam considerados como abusivos”, salienta, acrescentando que “esta é uma forma de assegurar que as pessoas ficam protegidas e desta maneira, se calhar, mais facilmente estarão dispostas a falar se souberem que depois não se pode tentar agir disciplinarmente contra elas sob a forma de represália do empregador em relação às suas declarações e à situação que se criou”, clarifica a advogada.

Além disso, destaca-se a clarificação da proibição da prática de assédio, que ficou consagrada no artigo 29º no ponto 1, passando para o ponto 2 a definição de assédio como “o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.”

Ficou também estabelecido o do direito da vítima a uma indemnização (ponto 4 do artigo 29º) e a constituição das práticas assediantes enquanto contraordenação grave (ponto 7 do artigo 127º).

Outra medida que Sandra Silveira acha importante realçar é o facto de estar previsto na lei que se responsabilize as empresas por qualquer tipo de doença resultante de um caso de assédio sexual no trabalho. “Na prática significa que se considera o assédio como uma doença profissional, sendo que os queixosos têm direito a receber indemnizações e compensações a ser pagas pelo empregador”. Contudo, para isso, “é preciso que as doenças que podem incorrer de uma situação de assédio sejam incluídas na lista das doenças profissionais, o que ainda não aconteceu. Significa que, por enquanto, nada se pode fazer quanto a isso”, conclui.

“Era agosto e não havia quase ninguém na empresa, além de mim e do meu chefe”, recorda Catarina Alves, hoje com 39 anos a viver em Barcelona, sobre memórias de um trabalho de verão em Cascais que acabou mal. Foi há 10 anos, na altura em que estava a licenciar-se em Política Social e aproveitava as férias grandes para arranjar trabalho e pagar os estudos. “Como falo vários idiomas encontrava estes trabalhos de pouco tempo com muita facilidade. Este encontrei através da Manpower” — uma empresa de trabalho temporário — “Era uma substituição da secretária, que estava de férias, para uma empresa de informática”.

O que começou com várias insinuações sobre a “juventude” e “beleza” de Catarina por parte do chefe, passou para tentativas furtivas de encontros e outras abordagens invasivas. “O clássico, num escritório”, comenta, frustrada, por na altura ter pensado que a culpa ainda era sua. A dada altura começa a receber SMS do chefe quando já não estava no trabalho, “a perguntar se estava em casa, se queria ir tomar um copo com ele… Na primeira vez ainda respondi a dizer que não, mas depois deixei de responder”. Aos poucos, foi piorando: “começou a dizer que estava de carro à minha porta à espera. Ele tinha acesso à minha morada, claro. Comecei a ficar muito assustada porque ainda por cima vivia sozinha”.

O mesmo chefe, quando em trabalho teve de viajar para Madrid, ligou a Catarina “umas 20 vezes”, deixou-lhe várias mensagens a pedir-lhe que fosse com ele de carro para passarem lá o fim de semana. “Eu não respondia, e então ele não parava de enviar mensagens e de me telefonar… Eu ia trabalhar super angustiada porque não queria perder o trabalho, mas tinha medo dele. Chegava a vomitar com a ansiedade de saber que tinha de ir trabalhar no dia seguinte.”

As esperas à porta de casa à noite repetiram-se algumas vezes, mas Catarina não pensou em fazer queixa. “Não falei com ninguém na empresa sobre isto. Só com o meu namorado da altura. Não soube como reagir a estes episódios e, por isso, não fiz nenhuma denúncia. Quando contei à minha família, também ninguém lhe deu muita importância e eu, idiota, senti que a culpa era minha.”

Dados do CIEG

Na verdade a reação de Maria e Catarina é bastante comum em situações destas. Segundo o estudo “Assédio Sexual e Moral no local de trabalho em Portugal”, conduzido pelo CIEG (Centro Interdisciplinar de Estudos de Género) da Universidade de Lisboa, realizado em 2015, tanto em situações de assédio moral como sexual, quando questionadas sobre com quem falaram sobre o incidente, as vítimas inquiridas responderam que preferem falar com amigos, com a família e o/a companheiro/a.

O caminho para o sucesso: previsão legal, fiscalização e formação

Nuno Morgado realça que, embora as medidas sejam um avanço, é necessário mais do que apenas a previsão legal. “Portugal tem muito este problema: por estar previsto na lei pensa-se que isso resolve os problemas. Mas mais do que a previsão legal, o que é importante é o reforço da fiscalização das autoridades laborais, porque as novas alterações na legislação não resolvem por si o problema”, diz, admitindo que não tem sido “manifestamente esse o foco” das ACTs (Autoridades para o Código do Trabalho), que se queixam da falta de meios e recursos. “Mais facilmente se voltam para questões de segurança e higiene no trabalho do que para estes temas, mas na verdade porque estes temas não têm tido até agora uma dimensão muito grande de queixas. Agora certamente terá mais, com estas alterações”, remata o advogado.

Sandra Silveira, da Cuatrecasas.

Acho que era importante que as empresas aproveitassem este momento para dar formação aos trabalhadores, fazer sessões de esclarecimento, para explicar as coisas e para no fundo ajudar a perceber o que é ou o que não é assédio. Há muitos comportamentos que ainda são tidos como normais e que se julga não serem incomodativos e, portanto, estes esclarecimentos e formações iam ao encontro de se perceber que tipo de comportamentos é que se devem afinal evitar.

Sandra Silveira

Associada sénior da Cuatrecasas

Sandra Silveira vai mais longe ao defender, além da fiscalização, formações orientadas para os trabalhadores e empregadores nesse sentido, porque, a seu ver, “a realidade nós não mudamos por decreto. Por muita fiscalização que exista, em bom rigor também temos de mudar consciências, formas de comportamento e este medo de falar”. “Acho que era importante que as empresas aproveitassem este momento para dar formação aos trabalhadores, fazer sessões de esclarecimento, para explicar as coisas e para no fundo ajudar a perceber o que é ou o que não é assédio. Há muitos comportamentos que ainda são tidos como normais e que se julga não serem incomodativos e, portanto, estes esclarecimentos e formações iam ao encontro de se perceber que tipo de comportamentos é que se devem afinal evitar”, esclarece a advogada.

No início de fevereiro, realizou-se no Porto o seminário “O impacto nas empresas da nova legislação sobre o assédio”, organizado pela Católica Porto Business School e a ACEGE, em parceria com a AEP, o Portal VER e a EDP, no sentido de esclarecer os líderes empresariais sobre esta nova legislação relativamente ao seu enquadramento e às suas questões legais e organizacionais.

Joana Gíria, presidente da Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE), comentou que o departamento de medicina no trabalho nas empresas pode ser “uma boa área para receber a denúncia e pedidos de informação sobre o assédio sexual”. A docente Helena Gonçalves, da Católica Porto Business School, foi ao encontro das opiniões dos advogados Sandra Silveira e Nuno Morgado, ao dizer que esta alteração legislativa “é uma excelente oportunidade para que possa emergir uma cultura de respeito”, salientando que se deve ter em conta diferentes abordagens nas empresas conforme a sua dimensão, pois “estamos a falar de uma cultura de empresa”, remata.

com Elisabete Felismino

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